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segunda-feira, 6 de julho de 2009

O equívoco de interpretação dos art. 12 e 16, caput, IV, da Lei 10.826/03

O equívoco de interpretação dos art. 12 e 16, caput, IV, da Lei 10.826/03
Por: Denilson Belegante, Promotor de Justiça - MP/RS

A todo momento surgem decisões considerando atípica, de forma temporária, a posse de arma de fogo, encontrada em residência. Registre-se que, nas decisões, não se faz qualquer diferenciação sobre a situação em que a arma é encontrada. Basta que ela esteja em residência para se considerar atípica a conduta.

Tal construção jurisprudencial, data venia, afronta à atual disciplina a respeito e não atenta para a mudança significativa que houve na redação do art. 32 da Lei n.º 10.826/03. Senão vejamos:

As armas não registradas serviram para duas experiências transitórias do legislador: a regularização do registro (art. 30) ou a entrega ao Estado, mediante indenização, se fosse o caso (art. 32).

A regularização do registro de arma de fogo clandestina – prática que já havia sido adotada nos artigos 5º e 20 da Lei 9.437/97 – foi objeto do artigo 30 do Estatuto do Desarmamento, o qual previu o prazo de 180 dias para tal ato, contados da publicação da Lei. O prazo do artigo 30 foi também sucessivamente prorrogado, sendo que ora se encontra redigido de acordo Lei 11.706/08, cujo prazo, porém, foi dilatado até 31/12/2009, por força do art. 20 da Lei 11.922/09.

Destarte, todos os possuidores de armas de fogo passíveis de regularização mediante registro estão autorizados a perpetuar tal conduta até o prazo legal de expiração sem incorrerem no crime do art. 12 do ED. Atualmente, tal prazo, como dito, é 31.12.09.

A possibilidade de registro, por óbvio, está restrita às armas passíveis de registro. Isso significa que: a) é necessária comprovação da origem lícita da arma de fogo ou declaração do titular nesse sentido (Lei 10.826/03, art. 30, com a redação da Lei 11.706/08), ressaltando-se que não pode existir registro no SINARM indicando proveniência de furto ou roubo (Decreto 5.123/04, art. 69); b) a arma deve ter seus caracteres identificáveis (Decreto 5.123/04, art. 15, inciso II); c) o interessado deve ostentar idoneidade moral, presumida pela inexistência de condenações, processos ou inquéritos policiais, bem como pelo exercício de profissão lícita e de residência fixa (Lei 10.826/03, art. 4º); d) o interessado deve ser maior de 25 anos de idade (Lei 10.826/03, art. 28).

Como visto, a possibilidade de regularização da arma de fogo possuída de maneira clandestina não é ampla e irrestrita, argumento que vem sendo empregado em decisões judiciais. Seria contraditório fazer rigorosos filtros para a aquisição de armas de fogo no Estatuto do Desarmamento e, simultaneamente, legalizar a aquisição pretérita de armas por pessoas inaptas ou legalizar a detenção de armas de origem ilícita, com a numeração raspada ou com características adulteradas.

Em suma, não são passíveis de registro:

a) em decorrência da impropriedade do objeto:
a.1) as armas de origem ilícita (furtos, roubos, receptação, etc.);
a.2) as armas com numeração suprimida, raspada ou adulterada;
a.3) as armas de uso proibido ou restrito;

b) em decorrência do mérito do sujeito
b.1) ausência de idoneidade moral;
b.2) menor de 25 anos;

Com isso, não há como aplicar-se o art. 30 da Lei em relação a tais situações, porquanto inviável o registro da arma de fogo.

Por outro lado, as armas clandestinas não passíveis de regularização só podiam ser objeto de entrega ao Estado, no termos expressos pela redação original do art. 32, caput, do Estatuto do Desarmamento, in verbis:

Art. 32. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas poderão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a boa-fé, poderão ser indenizados, nos termos do regulamento desta Lei.

O proprietário que entregasse a arma ao Estado seria passível ainda de ser indenizado pelo abandono da propriedade da arma, desde que estivesse com ela de "boa-fé". A presunção de boa-fé adviria da ausência de registro de origem delituosa da arma no SINARM (Decreto 5.123/04, art. 69).

Com isso, previu-se um prazo de anistia para as armas clandestinas de qualquer natureza, durante o qual não seria punível a conduta de possuir arma de fogo sem registro (ED, art. 12 e 16, caput, e inciso IV), pela possibilidade aberta ao possuidor de abandonar a arma ao Estado – com ou sem indenização, frise-se. Assim, mesmo o possuidor de má-fé ou com arma impossível de ser registrada teria a faculdade de fazer a entrega, no prazo legal, e não ser punido.

Esse entendimento advinha da literalidade do "prazo de anistia" temporária da norma de entrega. Se não é ilícita a posse de arma de fogo, qualquer que seja, durante o período de possível entrega voluntária ao Estado, não incide o crime .

Tal interpretação vinha gerando situações absurdas nas quais traficantes de drogas ou assaltantes eram presos em suas casas com armas de fogo clandestinas – e que obviamente jamais iriam entregar ao Estado ou regularizar a posse – mas cuja ação punitiva estatal quanto à posse ilegal de arma de fogo ficava impedida de ser exercida por conta da vigência da "anistia" temporária.

A base legal que permitia a jurisprudência praticar a "abolitio criminis" foi radicalmente modificada a partir da entrada em vigor da Lei 11.706/08.

O novo artigo 32 do Estatuto do Desarmamento prevê agora uma norma que trata da extinção da punibilidade pela entrega da arma, não trazendo qualquer "abolitio criminis" para a conduta dos art. 12 e 16, IV, do Estatuto.

Deve-se notar a diferença das redações do artigo 32 do Estatuto do Desarmamento na sua feição original e na atual configuração dada pela Lei 11.706/08:

Redação Original (Lei 10.826/03)
Art. 32. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas poderão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a boa-fé, poderão ser indenizados, nos termos do regulamento desta Lei.
Parágrafo único. Na hipótese prevista neste artigo e no art. 31, as armas recebidas constarão de cadastro específico e, após a elaboração de laudo pericial, serão encaminhadas, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, ao Comando do Exército para destruição, sendo vedada sua utilização ou reaproveitamento para qualquer fim.

Redação Vigente (Lei 11.706/08)
Art. 32. Os possuidores e proprietários de arma de fogo poderão entregá-la, espontaneamente, mediante recibo, e, presumindo-se de boa-fé, serão indenizados, na forma do regulamento, ficando extinta a punibilidade de eventual posse irregular da referida arma.
Parágrafo único. (Revogado)." (NR)


A nova redação teve vigência imediata a partir da publicação da Lei 11.706 (art. 4º), o que ocorreu em 20/06/2008.

Houve flagrante alteração no dispositivo.

Com efeito, a redação original previa um prazo de anistia para a devolução – prazo esse que veio sendo sucessivamente dilatado até a edição da Lei 11.706/08. Durante o prazo de anistia legal não havia qualquer punibilidade, pois sequer era ilícita a posse de arma de fogo clandestina, dada a possibilidade temporária de sua regularização ou entrega.

A nova regra não mais prevê prazo fixo para a entrega da arma clandestina ao Estado. Essa entrega pode ser feita a qualquer tempo. A exposição de motivos da Medida Provisória 417/08, que deu origem à Lei 11.706, previa que essa entrega tornava-se algo permanente, como uma verdadeira política pública estatal. Veja-se:

4. A urgência da medida também se manifesta por meio da alteração que se pretende ao artigo 32 do Estatuto do Desarmamento, que a partir da edição desta medida provisória não mais definirá um prazo final para a entrega, mediante indenização, de armas não registradas. Essa alteração viabilizará a retomada das campanhas de entrega de armas que, por meio da conscientização e mobilização da sociedade retirará milhares de armas de fogo das mãos dos cidadãos. Segundo o Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros 2008, a campanha de desarmamento promovida em 2004 foi diretamente responsável pela redução do número de homicídios em 5,5% em relação a 2003. Por estarmos tratando de salvar a vida de milhares de pessoas, não há como afastarmos a urgência e relevância desta medida provisória.

Contudo, sabiamente, colocou-se no artigo a previsão de que a entrega é que extingue a punibilidade da conduta de posse ilegal de arma de fogo. Isso significa que não é a simples possibilidade de entrega da arma ao Estado que torna lícita a conduta do possuidor. Pelo contrário: é a conduta ativa do possuidor que, de forma espontânea, terá o condão de extinguir a punibilidade da pretérita conduta de posse ilegal de arma de fogo.

Gize-se que a extinção da punibilidade por comportamento ativo do autor da conduta criminosa não é novidade em nosso Direito Penal, exemplificando-se com o disposto os artigos 342, § 2º (retratação do agente de falso testemunho), e 313, § 3º (reparação do dano no peculato culposo) do Código Penal.
Portanto, a partir da vigência da MP 417, e agora da Lei 11.706/08, ou seja, 20.06.08, a posse clandestina de arma de fogo não regularizável é, ipso facto, criminosa, somente havendo a extinção da punibilidade quando da entrega espontânea da arma.

É preciso, então, que seja chamada a atenção dos julgadores a respeito desta sensível alteração do art. 32 da Lei n.º10.826/03, que não mais prevê um prazo para a entrega, mas sim tornou esta permanente, com a consequência da extinção da punibilidade se ela for espontânea.

Não é possível, então, continuar-se com a interpretação pré Lei 11.706/08, como vem fazendo, renovada venia, o Poder Judiciário. Após essa Lei somente existe prazo para a regularização do registro, motivo pelo qual, em caso de apreensão de armas na posse de alguém, deve-se observar a situação da arma e as condições do possuidor, para fins de se considerar típica ou não a conduta.
 

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