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segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Ministério Público: singularidade histórica e defesa da cidadania no Brasil

Gunter Axt, historiador
 
Publico abaixo, o texto que serviu de base para a minha palestra desta semana, em Florianópolis. É claro que na palestra eu procurei contextualizar melhor muitos aspectos. Aqui, tudo está resumido. Este post também não se trata de um artigo, com indicação de fontes e referências, pois é o roteiro de uma palestra. Aqueles que sentirem disposição para aprofundar a questão podem consultar um de meus livros sobre a evolução histórica do MP no Brasil.

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O Ministério Público no Brasil está entre as mais notáveis instituições que assinalam a singularidade de nossa cultura institucional. Nenhum outro no mundo possui garantias tão sólidas e atribuições tão amplas. O ente ministerial, hoje considerado por muitos um Poder na prática, foi o último a se independentizar do Executivo, mas as funções já existiam há milênios.

Alguns localizam a origem do Ministério Público na figura do magiaí, funcionário do faraó no Antigo Egito, há mais de quatro mil anos, encarregado do castigo aos rebeldes, repressão aos violentos, acolhida dos apelos dos injustiçados, dos órfãos ou das viúvas, e que tomava também parte na instrução dos inquéritos. Há quem prefira identificar os primórdios da instituição nos éforos de Esparta: cinco magistrados anualmente eleitos que formavam um colégio tribunício para controlar a autoridade dos reis e dos gerontes; ou, ainda, nos tesmotetas atenienses: seis magistrados, também reunidos num colegiado, que instruíam processos posteriormente julgados pelos tribunais, velando pela correta aplicação das leis e controlando a prestação de contas dos estrategos.

Mas foi o nascimento do Parquet, na França, com a Ordenança de 1302, de Felipe IV, o Belo, que deu origem ao Ministério Público moderno. Esses agentes, demissíveis ad nutum, intervinham em tudo que fosse considerado de interesse público, pedindo castigo para criminosos, assistindo menores em causas civis ou criminais e oficiando junto aos tribunais nos assuntos de interesse da Coroa, do Estado ou da Igreja.

Em Portugal, os procuradores da Coroa e da Fazenda e o promotor da justiça existiam desde o século XIV e achavam-se presentes na Casa da Suplicação, a antiga corte de apelação. No Brasil, as funções existiam desde 1548, vinculadas à acusação penal e à defesa dos interesses do rei.

No Império (1822-1889), os promotores eram indicados pelo Ministro da Justiça, que integrava o gabinete parlamentar, dominado por um partido e moderado pelo Imperador. Funcionavam como uma espécie de estágio para a ascensão na carreira política. Um promotor leal ao partido e com boa oratória tinha chances de ser contemplado nas listas de candidatos para as Assembléias Legislativas, ou alcançar o cargo de Chefe de Polícia, para então seguir adiante na carreia pública.

As funções dos jurados e promotores não poderiam, ainda, ser acumuladas por senadores, deputados, magistrados, oficiais de justiça e autoridades administrativas e militares de primeiro e segundo escalão; mas nada impedia que vereadores exercessem o cargo. A Lei mandava preferir os candidatos instruídos em Direito, mas não vedava o exercício da função aos leigos, concessão fundamental para o preenchimento das vagas num País que há pouco criara os primeiros cursos jurídicos em Olinda e São Paulo, de acordo com a Lei de 11 de agosto de 1827.

Os promotores eram nomeados pelo governo na Corte e pelos presidentes de províncias, pelo prazo de três anos, a partir de lista tríplice proposta pelas câmaras municipais. Tinham por atribuições privativas a denúncia de crimes públicos, policiais e de calúnias contra a família imperial e poderes da Nação, a acusação dos réus perante os jurados, solicitar a prisão de criminosos, promover a execução de sentenças e mandatos judiciais e, por fim, denunciar corrupção ou incompetência de autoridades administrativas. O promotor podia encaminhar suas denúncias aos juizes, às Relações, ao Supremo ou às câmaras legislativas provinciais.

Regresso Conservador

A Reforma do Código de Processo Criminal, pela Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841, suprimiu a participação das câmaras municipais na indicação do promotor. A nomeação para o cargo passou a ser privativa do Imperador ou dos presidentes da província, que eram, aliás, também nomeados pelo Imperador. Doravante, os promotores perceberiam salários e deveriam acompanhar os juizes de direito, os quais podiam substituí-los interinamente. A permanência na promotoria era por tempo indeterminado e os ocupantes eram demissíveis ad nutum. Fixou-se o número de um promotor por comarca – e não mais por termo –, podendo haver mais de um nas comarcas mais populosas.

Reações

Os liberais procuraram mobilizar as comunas e reagiram às manobras conservadoras com a irrupção dos movimentos armados de 17 de maio de 1842, em São Paulo, e 10 de junho de 1842, em Minas Gerais. O descontentamento foi potencializado em virtude das eleições para a Legislatura de 1842, ocorridas durante o Gabinete Maiorista, tristemente celebrizadas pela alcunha de "eleições do cacete", quando o Partido Conservador, assenhoreado do poder, promoveu a remoção de chefes de polícia e juízes de direito, bem como a suspendeu de juízes de paz, que presidiam o pleito, a fim de generalizar diversas formas de fraude.

O Decreto nº 502 de 18 de fevereiro de 1847 proibiu o acúmulo do cargo de vereador para promotores efetivos, adjuntos e interinos. O Aviso de 7 de outubro de 1843 vedou aos promotores o emprego de professor de francês. O Aviso de 31 de outubro de 1859 instituiu o impedimento à advocacia para os promotores nas causas criminais e nas cíveis que pudessem vir a ser objeto de processo crime, embora houvesse exceções para o exercício da advocacia. O Aviso nº 499 de 31 de outubro de 1871 obrigava os subdelegados que porventura fossem nomeados promotores a se demitirem do cargo anterior. Os Códigos de Processo Criminal proibiam também o acúmulo de secretarias de província. O promotor adjunto também não poderia exercer cargos administrativos nas câmaras. Nenhum promotor poderia exercer função de jurado ou de juiz municipal. Um membro da assembléia provincial não poderia ser nomeado para a promotoria pública, mesmo depois de encerrado seu mandato parlamentar, conforme dispunha o Aviso de 9 de outubro de 1877.

O Imperador identificou no procurador um aliado para fiscalizar os procedimentos da magistratura – A Reforma de 1841 procurou converter o promotor num instrumento do Poder Central nos termos e nas comunas, o que, bem ou mal, se submetia o promotor ao chefe policial e ao ministro da justiça, não deixava de constituir-se numa garantia da população contra a prepotência dos poderes privados locais.

Reforma de 1871

Nabuco de Araújo pretendera uma instituição independente, sob o comando do procurador da Coroa, com atribuições extensivas às áreas administrativa, criminal, comercial e cível. Sua ação alcançaria todas as formas de violação do princípio da justiça e todos as esferas de jurisdição do Poder Judiciário, da paróquia ao Supremo, convertendo-se no guardião da Constituição e das leis. Como providência conexa, Nabuco de Araújo preconizara também a criação de uma Ordem dos Advogados.  Ambas as medidas, entretanto, foram consideradas por demais ousadas, não merecendo contemplação na Lei 2.033 de 1871.

Todavia, ainda que o Ministério Público estivesse muito longe da forma divisada por Nabuco de Araújo, parte das reivindicações do Estadista do Império foi sendo lentamente concretizada pela legislação seguinte. A Lei do Ventre Livre, promulgada logo a seguir, em 28 de setembro de 1871, sob o número 2.040, deu ao promotor público a função de protetor do fraco e indefeso, ao estabelecer que a ele cabia zelar para que os filhos livres de mulheres escravas fossem devidamente registrados.

Assim, em 2 de maio de 1874, pelo Decreto nº 5.618, o Imperador estabelecia um novo Regulamento das Relações – Pela primeira vez, a legislação brasileira referia-se ao procurador como o "órgão do Ministério Público perante a Relação". O promotor de justiça e procurador da Coroa e da Soberania Nacional mantinham ainda cumulativamente todas as prerrogativas de magistrado: o chefe do Ministério Público era o desembargador mais moderno.

Com a proclamação da República, o governo central foi substituído pelos estaduais na indicação dos promotores, que se tornaram dependentes dos Governadores e do partido no poder. Eram os tempos de coronelismo: na política, campeavam a fraude eleitoral e estratégias extralegais, próprias de universo de indistinção entre espaços público e privado.

1934 – Pela primeira vez, o Ministério Público foi formalmente contemplado no texto constitucional, sendo integrado ao Capítulo VI e considerado como "órgão de cooperação nas atividades governamentais". A nomeação do procurador-geral da República continuou como atributo do presidente, mas deveria agora ser aprovada pelo Senado, enquanto os membros seriam nomeados mediante concurso público. Os promotores e procuradores ganharam também estabilidade, podendo apenas perder o cargo mediante processo administrativo ou sentença judiciária, diante dos quais lhes era assegurada ampla defesa. Aos chefes do Ministério Público da União e dos estados foi vedada a acumulação de outras funções públicas, salvo o magistério. Finalmente, a Constituição determinou a organização do Ministério Público em todos os estados e territórios.

Nos anos 1940, a ditadura do Estado Novo varguista impusera retrocesso com relação a conquistas asseguradas na Constituição de 1934. Mas promotores de São Paulo e do Rio Grande do Sul conseguiram organizar as suas associações de classe, dando um passo decisivo na consolidação da carreira. Com o tempo, foram seguidos pelas categorias dos outros estados.

O Código Penal de 1940 fortaleceu o Ministério Público, ao permitir a requisição de diligências à polícia e avançar no sentido do reconhecimento da titularidade da ação penal. Prestigiou a ação do Juiz e do Ministério Público e limitou o protagonismo gozado pela polícia durante a república Velha. Este movimento de valorização do Magistrado e do membro da instituição ministerial dialoga em sintonia com as modificações introduzidas na área cível pelo Código de Processo Civil de 1939. A consagração do princípio do livre convencimento no julgamento é outro traço recorrente entre a nova legislação processual penal e cível.

Em 1942, realizou-se em São Paulo o I Congresso Nacional do Ministério Público. Pretendiam os congressistas conquistar a independência para com a Magistratura, consolidar carreira própria, universalizar a obrigatoriedade do concurso público, garantir a estabilidade funcional, impedir as remoções arbitrárias, ressalvar amplo direito à defesa nos processos administrativos e sindicâncias, consolidar o direito às férias remuneradas e evitar o acúmulo, em segunda instância, das funções do Ministério Público com a advocacia do estado.

A Constituição de 1946 garantiu algumas dessas reivindicações, mas a pauta era ousada e se consolidou em ritmos diferentes nos estados, tendo São Paulo sempre à frente. Com o regime militar instalado em 1964, percebeu-se que o centro de decisões deslocava-se para Brasília, em virtude da centralização política. Assim, os membros do Ministério Público investiram na consolidação da CAEMP, Confederação das Associações Estaduais do Ministério Público, no seio da qual se debateu um amplo projeto de reforma da instituição.

Em 1965, as leis de Ações Populares expressaram o poder interveniente na condição de fiscal da lei e de protetor do interesse público. E o Código de Processo Civil, de 1973, disciplinou a intervenção ministerial em matérias cíveis.

Em 14 de dezembro de 1981, a Lei Complementar nº 40, qualificou pela primeira vez o Ministério Público como "instituição permanente e essencial à função jurisdicional", sendo considerado "responsável, perante o Judiciário, pela defesa da ordem jurídica e dos interesses indisponíveis da sociedade". Foram estabelecidos como seus princípios cardeais a unidade, a indivisibilidade e a autonomia funcional. Determinou-se a organização do Ministério Público em todos os estados e garantiu-se um plano de carreira próprio, autonomia administrativa e financeira, com dotação orçamentária específica. Além da Corregedoria e do Conselho Superior, criou-se, dentre os órgãos constitutivos, o Colégio de Procuradores.

Ainda em 1981, legitimou-se o Ministério Público à proposição de ação de responsabilidade civil ou criminal na área do meio ambiente, que se tornava sensível no Brasil. Em 24 de julho de 1985, a Lei da Ação Civil Pública, consolidou essa evolução, conferindo-lhe legitimidade para a propositura de ações civis públicas em defesa dos interesses difusos e indisponíveis, como aqueles relacionados à defesa do meio ambiente, do patrimônio histórico e paisagístico, do consumidor, do deficiente, dos direitos constitucionais do cidadão, etc. Este diploma estabeleceu um novo horizonte ao Ministério Público na área cível, pois a partir daí formou-se um canal proponente para o tratamento judicial das questões atinentes aos direitos coletivos.

A Constituição de 1988 acolheu as novas mudanças e ampliou o seu alcance. Pela primeira vez, um texto constitucional disciplinou de forma orgânica e harmônica a organização e as atribuições da instituição ministerial no País. Na área criminal, explicitou que ao Ministério Público competia, privativamente, a promoção da ação penal pública. Conferiu-lhe ainda o exercício do controle externo da atividade policial, na forma de lei complementar, ao nível federal e estadual. Permitiu-lhe requisitar diligências investigatórias e determinar a instauração de inquérito policial. Na área cível, além da promoção da ação de inconstitucionalidade, a Constituição passou a reconhecer-lhe a defesa dos interesses indígenas em juízo e a promoção da ação civil pública. Além disso, deferiu-lhe explicitamente a vigilância da probidade administrativa dos governantes.

Erigido quase como um quarto Poder, ao Ministério Público foi cometido o zelo das principais formas do interesse público. Foi responsabilizado pela defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. As garantias de unidade, indivisibilidade e autonomia firmaram-se na base da independência funcional dos membros. Isto é, os poderes do procurador-geral passaram a encontrar limite constitucional na independência funcional dos membros. Portanto, a hierarquia do Ministério Público foi desenhada como sendo administrativa e não funcional. A Constituição repisou os princípios de autonomia financeira da instituição traçados pela Lei Complementar de 1981. Mas avançou ao admitir iniciativa no processo legislativo, no tocante à edição de leis complementares, à criação ou extinção de cargos, organização de serviços auxiliares e de concursos.

Tamanho salto qualitativo foi possível porque a classe estava organizada. Em 1985 e em 1986, realizaram-se encontros nacionais preparatórios para a Constituinte, nos quais a proposta foi amadurecida. Durante a Constituinte, ajudou a aprovação da pauta o fato de influentes parlamentares serem ligados à instituição. Mas houve oposição. A mais renhida partiu do Ministério Público Federal, que não aceitava o projeto dos estados, especialmente na parte que estabelecia a vedação à advocacia da União: o MPF queria permanecer vinculado ao Poder Executivo. Por seu turno, grande parte do Ministério Público do Rio de Janeiro não queria abrir mão da advocacia privada, cujo exercício acumulava com a função ministerial. Ambas as categorias acabaram derrotadas e o projeto dos promotores dos estados se impôs.

Promulgada a Constituição, a oposição transferiu-se para a classe política. Surgiram, por exemplo, de lá para cá, projetos tentando amordaçar os promotores ou cassar-lhes atribuição de participação na fase pré-processual, investigatória.

No início dos anos 1990, construiu-se no Brasil um substrato legal infraconstitucional de extraordinário alcance para o reconhecimento e proteção dos chamados direitos indisponíveis e difusos, o que estabeleceu um novo paradigma jurídico. Na esteira da Lei da Ação Civil Pública, de 1985, vieram, em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código do Consumidor; em 1992, a Lei da Improbidade foi o corolário do debate iniciado no Congresso em janeiro de 1988, com a instalação da CPI da Corrupção; também em 1992, foi promulgado o Código do Meio Ambiente.

Este novo arcabouço pode se converter na pedra de toque da moderna democracia brasileira, justamente por constituir uma cunha fincada no coração do nosso renitente caráter cordial, na feliz expressão do historiador Sérgio Buarque de Holanda. Este quadro diferencia o Brasil de outros países emergentes, fortalecendo-lhe condições para a construção da democracia.

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