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domingo, 31 de agosto de 2008

Bioética, direitos humanos e anencefalia, por Marcia Mocellin Raymundo*

Zero Hora, 31 de agosto de 2008 N° 15712

Historicamente, a ética sempre esteve relacionada a questões de igualdade, de justiça e de respeito à dignidade. Entretanto, para que esses valores sejam garantidos, existe a necessidade de um universalismo moral, ou seja, pontos em comum para que se possa conviver em sociedade de forma harmônica, porém, respeitando diferenças. Ou seja, é visível a necessidade de um mínimo moral comum a todos, não importando as diferenças, mas ressaltando o que há de comum entre os grupos. Os direitos humanos correspondem a esse campo universal básico que se predispõe a respeitar a diversidade. Da mesma forma, se entendemos a bioética como um espaço de reflexão ética que permite a expressão de distintas singularidades de pensamento e respeito a essa singularidade, um denominador comum capaz de dar conta do respeito por essa singularidade é justamente o campo dos direitos humanos. É neste contexto que a bioética associa-se aos direitos humanos. E, por essas razões, as decisões relativas ao respeito ao ser humano não podem ser pautadas por escolhas baseadas em argumentos de cunho pessoal ou religioso.

As crenças e os desejos de um membro ou de grupos da sociedade não podem ser impostas a outros membros ou grupos. Essa é a única maneira de garantir uma convivência harmônica e pacífica, ou seja, a garantia da laicidade não apenas em tese, mas na sua prática. Nesse caso, entende-se a laicidade como a garantia do respeito pelas distintas formas de expressão, assegurando a liberdade de consciência e de pertencimento religioso, levando assim à construção e garantia de um Estado realmente laico, onde as instituições políticas se legitimam pela soberania popular e não por normativas de cunho religioso específico. E, para que esse Estado laico seja garantido, ele não pode adotar os preceitos de um ou outro grupo religioso, mas garantir a sua participação equânime na sociedade através da liberdade de consciência e da garantia do respeito pelos direitos humanos.

Nesse sentido, impedir a antecipação do parto de um feto comprovadamente anencefálico fere o direito à dignidade da pessoa que gesta e o direito de fazer a sua livre escolha. Da mesma forma, não se trata de impor à gestante a interrupção da gravidez em caso de anencefalia, apenas busca-se que seja possível fazer a opção por levar adiante ou não essa gestação. As situações envolvendo equívocos diagnósticos acabam por confundir o que já está claramente estabelecido. O anencéfalo é incompatível com a vida e, se chegar a nascer, não sobreviverá mais do que algumas horas, dias ou, em alguns casos, por algumas semanas. A sua situação de não possuir córtex e de ser equiparado a um natimorto nunca será reversível. Contribui ainda para a confusão que se estabelece em torno desta discussão o fato de o anencéfalo algumas vezes nascer respirando e possuir algumas funções, como a de mamar, por exemplo. Importante esclarecer que essas atividades estão relacionadas ao tronco cerebral, que está presente nos anencéfalos. Porém, trata-se de funções transitórias, que irão desaparecer. As atividades de vida de relação e consciência, determinadas pelo córtex cerebral, não estão presentes no anencéfalo. Acrescentam-se ainda as questões relativas à saúde da mãe, uma vez que a gestação de um anencéfalo envolve riscos maiores que uma gestação comum. Essas informações são fundamentais como norteadoras de qualquer discussão sobre o assunto. E, no campo da bioética, a precisão das informações e sua análise crítica e desprovida de juízos baseados em crenças é também fundamental.

* Bióloga, doutora em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em bioética * Bióloga, doutora em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em bioética

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