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quinta-feira, 19 de março de 2009

Artigo: Conselho Tutelar e o adolescente em conflito com a lei

Por Murillo José Digiacomo
Promotor de Justiça no Estado do Paraná

Matéria interessante, que vem sendo objeto de certa controvérsia - a meu
ver de forma totalmente despropositada, diz respeito à atuação do
Conselho Tutelar em relação aos adolescentes em conflito com a lei,
assim entendidos aqueles acusados da prática de condutas descritas pela
lei penal como crime ou contravenção.

Temos conhecimento de situações extremas, que vão da atuação
sistemática, desde o momento da apreensão (inclusive com o
acompanhamento da lavratura do boletim de ocorrência circunstanciado ou
auto de apreensão), até a recusa pura e simples em lidar com o jovem
salvo na hipótese de assim o determinar a autoridade judiciária, na
forma do disposto no art.136, inciso VI da Lei nº 8.069/90.

Bem, em primeiro lugar devemos considerar que, de fato, a única
disposição expressa do Estatuto da Criança e do Adolescente referente à
intervenção do Conselho Tutelar em relação ao adolescente em conflito
com a lei, se encontra em seu citado art.136, inciso VI, que estabelece,
dentre as atribuições do Órgão Tutelar, a de "providenciar a medida
estabelecida pela autoridade judiciária, dentre as previstas no art.101,
de I a VI, para o adolescente autor de ato infracional" (verbis).

Salta aos olhos, no entanto (data venia os que pensam o contrário), que
a atuação do Conselho Tutelar junto a esses jovens não pode ocorrer
apenas em tal hipótese, o que acabaria por desvirtuar as próprias
características e atribuições do Órgão Tutelar. Com efeito, se por um
lado é certo que o Conselho Tutelar não pode nem deve substituir o papel
da polícia judiciária, Ministério Público e/ou Juiz da Infância e
Juventude no que concerne à apuração do ato infracional[2], por outro
também não pode depender do destino do procedimento instaurado para que
possa agir.

Devemos lembrar que, por expressa definição do art.131 da Lei nº
8.069/90, o Conselho Tutelar é órgão autônomo, que tem atribuições
específicas relacionadas à defesa dos direitos da criança e do
adolescente que estejam de qualquer modo ameaçados ou tenham sido
violados nas hipóteses relacionadas no art.98 do citado Diploma Legal
(conforme art.136, inciso I também do Estatuto da Criança e do
Adolescente). Nesse contexto, a intervenção do Conselho Tutelar junto ao
adolescente em conflito com a lei obviamente não pode ficar condicionada
ao encaminhamento do caso pela autoridade judiciária, ao final de um
procedimento cujo destino é incerto e cuja tramitação pode ser
extremamente morosa.

A atuação do Conselho Tutelar em tais casos deve ocorrer de forma
absolutamente autônoma, independentemente da apuração dos fatos
atribuídos ao jovem e da sorte do procedimento, ficando, é claro,
condicionada não à eventual comprovação da autoria e materialidade do
ato infracional (tarefa que evidentemente não cabe ao Órgão Tutelar),
mas sim à aferição da presença de situação de risco pessoal ou social,
ex vi do disposto no art.98 da Lei nº 8.069/90.

E este é o ponto fundamental.

Ao estabelecer ao Conselho Tutelar a atribuição de atender crianças e
adolescentes que se encontram em situação de risco pessoal ou social, a
Lei nº 8.069/90 não excepcionou o atendimento de adolescentes acusados
da prática de ato infracional, sendo certo que a presença da situação de
risco pode ser determinada em razão da conduta do adolescente, ex vi do
disposto no art.98, inciso III da Lei nº 8.069/90.

Note-se não estamos afirmando que todo adolescente autor de ato
infracional, apenas por esta singela razão, se encontra em situação de
risco, mas é lógico que a conduta infracional, notadamente em razão da
eventual gravidade do ato praticado ou reiteração de infrações mesmo de
natureza leve, deve ser considerada ao menos indiciária de que algo está
errado com o jovem e/ou sua família, e como a sistemática estabelecida
pelo Estatuto prima pela prevenção, com a intervenção protetiva da
autoridade competente ante a simples ameaça de violação de direitos, ao
menos deve ser a situação pessoal, familiar e social do jovem apurada e
avaliada, e uma vez constatada a efetiva presença da situação de risco
no caso em concreto, deverá o Conselho Tutelar intervir natural e
obrigatoriamente, no estrito cumprimento da citada atribuição prevista
no art.136, inciso I da Lei nº 8.069/90. Como dito acima, tendo em vista
a autonomia do Órgão Tutelar, sua intervenção, se necessária, obviamente
deverá ocorrer paralelamente ao procedimento judicial eventualmente
instaurado para apurar o ato infracional, independentemente de
provocação ou autorização da autoridade judiciária competente (embora
seja recomendável comunicá-la das providências tomadas e dos eventuais
êxitos atingidos, que poderão influenciar na aplicação de medidas
sócio-educativas e mesmo protetivas ao jovem).

Uma vez que concluímos pela possibilidade, e em alguns casos até mesmo
necessidade da intervenção do Conselho Tutelar em relação ao adolescente
em conflito com a lei que, por qualquer razão, se encontra em situação
de risco na forma do disposto no art.98 da Lei nº 8.069/90, resta tecer
comentários acerca algumas situações que vêm acontecendo e que merecem
ser objeto de melhor reflexão.

Uma delas diz respeito à exigência, normalmente efetuada pelo Conselho
de Direitos da Criança e do Adolescente, de que membros do Conselho
Tutelar acompanhem, de forma sistemática, a lavratura pela autoridade
policial do auto de apreensão ou boletim de ocorrência circunstanciado
de adolescentes apreendidos em flagrante de ato infracional. Vale
registrar que compreendemos o objetivo da medida acima referida, que vem
a ser o de garantir a integridade moral e mesmo física do adolescente,
protegendo-o contra potenciais abusos cometidos pelos agentes policiais.

Ocorre que, em primeiro lugar, pela própria sistemática do Estatuto da
Criança e do Adolescente, deve-se primar para que o adolescente, quando
da formalização do ato de sua apreensão e ao longo de todo o
procedimento sócio-educativo, seja assistido por seus pais ou
responsável ou, ao menos, como diz o art.107, caput da Lei nº 8.069/90,
por pessoa por ele indicada.

Note-se que o dispositivo supra, ao estabelecer que a apreensão do
adolescente e o local em que se encontra recolhido serão comunicados
incontinenti[3] à sua família ou à pessoa por ele indicada, quis fosse
tal contato realizado de forma instantânea, sem qualquer demora,
automática à apresentação do jovem perante a autoridade policial, tendo
a medida o claro objetivo de permitir a seus pais, responsável ou pessoa
por ele indicada, o acompanhamento de sua oitiva perante a autoridade
policiais e demais formalidades relacionadas à apreensão.

Como dentre aqueles que devem ser obrigatoriamente comunicados da
apreensão do adolescente[4], o legislador deixou de incluir o Conselho
Tutelar, é lógico concluir não há porque, de forma sistemática, seja ele
acionado sempre que ocorrer tal apreensão, ficando é claro assegurado ao
adolescente apreendido o direito de, se assim o desejar, optar pela
comunicação ao Conselho Tutelar ou a algum de seus membros com o qual o
mesmo, pelas mais diversas razões, mantém alguma espécie de vínculo.

Coisa alguma impede, porém, que o próprio Conselho Tutelar, na
perspectiva de garantir a já mencionada integridade moral, psíquica e
física de adolescentes apreendidos, mediante deliberação de sua plenária
e prévio acordo com a autoridade policial competente, por iniciativa
própria resolva realizar o referido acompanhamento sistemático, que em
tal caso, por óbvio, não irá desobrigar a autoridade de, quando da
apreensão, comunicar além do Órgão Tutelar, os pais, responsável ou
pessoa indicada pelo apreendido.

O que não se admite é que semelhante prática seja de qualquer modo
imposta por pessoa, órgão ou autoridade estranha ao Conselho Tutelar,
embora possam estes, em sentindo a necessidade, tentar junto ao Órgão
Tutelar a concordância com a implantação de tal sistemática, haja vista
que os mesmos resultados por ela pretendidos poderiam ser perfeitamente
obtidos por outros meios, notadamente através da criação, pelo
município, de um programa específico de atendimento psicossocial a
adolescentes apreendidos em flagrante de ato infracional, que ficaria
encarregado de acompanhar (mais uma vez sem prejuízo da presença dos
pais, responsável ou pessoa indicada pelo jovem), todo o trâmite
policial do procedimento, inclusive com a condução do jovem até sua
residência, se necessário.

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