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quarta-feira, 1 de abril de 2009

A polêmica dos medicamentos excepcionais

Cláudia Fernanda de Oliveira Pereira

Procuradora-geral do Ministério Público de Contas do DF, autora do livro Direito sanitário: a relevância do controle nas ações e serviços de saúde.

Nos próximos dias 27 e 28 de abril, o Supremo Tribunal Federal realizará audiência pública, para debater a responsabilidade do Estado em matéria de saúde. É que a Constituição Federal garantiu o direito à saúde a todos, de forma universal e igualitária, sendo dever do Estado prestá-lo. Direito assim tão abrangente começa a ser questionado quanto à possibilidade financeira do Estado e à própria viabilidade do tratamento, pois, por mais que avance a medicina, a vida humana é finita.

Para tanto, as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede de atendimento que constitui o Sistema Único de Saúde (SUS). Ao ser lido o artigo 200 da Constituição Federal, percebe-se que não foi dada ao SUS qualquer competência normativa, competindo-lhe, nesse campo, controlar, fiscalizar e participar da produção de medicamentos (inciso I). Nada obstante, é a Lei 8.080/90 que lhe dá o poder de elaborar normas com relação à produção de insumos e equipamentos.

Assim, para começo de discussão, é dever questionar até que ponto as normas editadas pelo SUS (cuja direção, no âmbito da União, compete ao Ministério da Saúde) são vinculantes, posto que, em nosso sistema, a competência preponderante para editar normas é do Poder Legislativo. Pois bem, a assistência farmacêutica, dispensada pelo SUS, abrange medicamentos básicos, excepcionais e estratégicos, bem assim um programa nacional de plantas medicinais e fitoterápicas, regidos, em geral, por portarias específicas.

Foi a Portaria 3916/98 que aprovou a Política Nacional de Medicamentos, contemplando a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais, Rename, que contém um catálogo dos medicamentos que devem ser fornecidos pelo Sistema Único de Saúde, sujeito à atualização e revisão permanente. Atualmente, vigora a Rename de 2008, revista pela Comissão Técnica e Multidisciplinar de Atualização da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Comare). De outra parte, é a Portaria 2.587/08 que estabelece os fluxos para incorporação de tecnologias no SUS. Ademais, no Brasil, devem ser cumpridos os ditames da Lei 6.360/76 (e suas alterações, como a Lei 1.0742/2003) e Lei 9.787/1999, com relação aos genéricos.

Recentemente, foi aprovada a Lei 11.903/09, que pretende criar um Sistema Nacional de Controle de Medicamentos. Com sete artigos e uma previsão gradual de implantação, perdeu-se, todavia, ótima oportunidade para serem estabelecidas regras mais concretas nesse campo, como ocorre na Espanha, país cujo sistema de saúde é incrivelmente semelhante ao nosso.

Também a Constituição espanhola garante a saúde como direito de todos, sendo prestado pelo Sistema Nacional de Salud (SNS), público e integral, como o brasileiro. No entanto, a Lei de Garantia de Uso Racional de Medicamentos e Produtos Sanitários nº. 29/06 responde a três perguntas básicas: quem admite, como e por que um medicamento ou produto sanitário no SNS.

De início, a citada norma afirma que a prescrição e dispensação de medicamentos e produtos sanitários deverá ser realizada de acordo com critérios básicos de uso racional. Depois, reconhece o direito de todos os cidadãos a obter medicamentos, em condições de igualdade em todo o SNS, sem prejuízo de medidas tendentes a racionalizar a prescrição e utilização de medicamentos e produtos sanitários. Desse modo, todos os profissionais, que prestam seus serviços no SNS ou no sistema público de investigação científica e desenvolvimento tecnológico espanhol, têm o direito e o dever de colaborar com as administrações sanitárias na avaliação e controle de medicamentos e produtos sanitários. Em seguida, a lei prevê rigorosamente o procedimento para o financiamento público, proibindo, ainda, a prescrição e dispensação de medicamentos e produtos sem estarem legalmente reconhecidos e estabelece as sanções para o seu descumprimento.

Essa norma se completa com outras duas leis: a Lei Geral de Sanidade (14/06) e a Lei 16/03, nas quais se estabelece que o direito à proteção à saúde deve vir expresso em um catálogo de prestações, acompanhado de uma memória econômica que contenha a valoração do impacto positivo ou negativo que pode acarretar. É a carteira de serviços, por sua vez, que prevê o conjunto de técnicas, tecnologias ou procedimentos, mediante os quais se fazem efetivas as prestações sanitárias. Nesse sentido, o Real Decreto 1.030/06 prevê, exaustivamente, as prestações sanitárias de saúde pública, atenção primária, especializada, de urgência, prestação farmacêutica, ortoprotésica, de produtos dietéticos e transporte sanitário, que serão dispensados pelo SNS.

Referido sistema, com normas claras, seria totalmente aconselhável ao Brasil, de modo que o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública seriam os últimos, e não os primeiros do filtro, na difícil tarefa de decidir o que deve ou o que não deve ser financiado pelo SUS.

Além do mais, há três anos trabalhando na questão, no âmbito distrital, o que é possível concluir é que há enorme desconhecimento dos orçamentos públicos. Após requisição minuciosa de milhares de documentos, inclusive cópia de todas as ações judiciais em 2007, o MPDFT-2ª Prosus e o MPC/DF elaboraram quatro relatórios. Observou-se que a alegada falta de recursos não é real na capital, já que a União responde com quase 80% dos valores para tais aquisições; algumas ações são ajuizadas, contudo, com base em receitas de médicos particulares, sem que o paciente nem sequer acorra à porta de entrada do sistema, ou também com receitas de médicos da própria Secretaria, que insistem em prescrever fármacos não catalogados oficialmente e, alguns, nem sequer autorizados pela Anvisa; algumas ações visavam medicamentos banais, como aspirina, cujo custo judicial da cobrança é seguramente mais elevado; grande parte dos medicamentos constava da Reme local, e não foram dispensados por deficiente gestão no sistema de compras, sem agilidade e devida programação, gerando, portanto, pleitos judiciais ou aquisições emergenciais questionáveis.

Dessa forma, defende-se a adoção de marcos legais dialógicos e transparentes. Enquanto isso não acontecer, médicos não se sentirão obrigados ao cumprimento de portarias; pacientes não conhecerão claramente os limites da assistência; e juízes, membros do MP e defensores continuarão sem um norte a seguir. É chegada a hora de enfrentar de vez a questão. (Correio Barziliense, 30 mar. 2008. Direito & Justiça).

 

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