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quinta-feira, 3 de setembro de 2009

O Ministério Público como o novo tribunato

O Ministério Público como o novo tribunato

Elaborado em 01.2008.

Alexandre Assunção e Silva

Procurador da República. Mestre em Políticas Públicas.

Ainda que, devido à natureza invejosa dos homens, sempre tenha sido tão perigoso encontrar modos e ordenações novos quanto procurar águas e terras desconhecidas – por estarem os homens sempre mais prontos a censurar do que a louvar as ações alheias -, assim mesmo, levado pelo natural desejo que em mim sempre houve de trabalhar, sem nenhuma hesitação, pelas coisas que me pareçam trazer benefícios comuns a todos, deliberei entrar por um caminho que, não tendo sido ainda trilhado por ninguém, se me trouxer enfados e dificuldades, também me poderá trazer alguma recompensa, por meio daqueles que considerarem com humanidade os objetivos deste meu labor. E, se o engenho pobre, a pouca experiência das coisas presentes e o pequeno conhecimento das antigas tornarem insuficiente e de não grande utilidade esta minha tentativa, pelo menos abrirão caminho a alguém que, com mais virtú, mais eloqüência e discernimento, possa vir a realizar este meu intento: o que, se não me granjear louvores, não deveria gerar censuras. (MAQUIAVEL, Nicolau. Discurso sobre as primeiras décadas de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 05)


1 INTRODUÇÃO

O presente artigo visa sugerir um próximo passo na evolução do Ministério Público no Brasil, pós Constituição de 1988, e para isso, olha o passado, a fim de refletir sobre o futuro.

Atualmente, a independência funcional e a autonomia financeira, características presentes no Ministério Público, são buscadas por outras instituições. Projetos de emenda constitucional visam atribuí-las também à Polícia e à Defensoria Pública (PEC n. 37/2006 e PEC n. 487/05).

A Polícia tem a função de exercer a vigilância pública e apurar infrações penais, investigando os culpados pela prática de crimes (art. 144, § 1º, inciso I e § 4º, da CF/88); já a Defensoria Pública presta assessoria jurídica aos necessitados (art. 134 da CF/88). Essas instituições alegam que, para exercerem melhor suas atribuições, precisam de mais independência e prerrogativas. A Polícia tornar-se-ia um tipo de agência ou autarquia especial, independente do poder executivo, e a Defensoria Pública passaria a ter independência financeira e orçamentária.

Perguntamos: se tais instituições querem e podem evoluir, porque o Ministério Público igualmente também não pode?

Entendemos que isso é possível, para melhor exercer as funções que já lhe foram outorgadas pela CF/88, de defensor do regime democrático, da ordem jurídica e dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

A justificativa política para a ocorrência dessa evolução será analisada a seguir.


2 DA CRISE NO SISTEMA DEMOCRÁTICO REPRESENTATIVO

Para Bobbio (2004), a democracia representativa significa genericamente que as deliberações coletivas são tomadas não diretamente por aqueles que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para esta finalidade. A democracia contemporânea, porém, quando comparada à democracia inspirada em Rousseau, no que tange à participação popular, está em crise ao menos por três razões. Inicialmente, a participação do povo resulta tão só na formação da vontade da maioria parlamentar, e o parlamento hoje não é o centro do poder de fato, mas apenas um local onde refletem-se os resultados de decisões tomadas em outros foros. Além disso, ainda que o parlamento fosse o órgão de poder real, o voto popular vem se limitando a legitimar, a intervalos regulares, uma classe política que visa à própria auto-conservação, que tende à oligarquia, e é cada vez menos representativa. Por último, quando das eleições, a participação popular é distorcida, manipulada pela propaganda das poderosas organizações televisivas, religiosas, partidárias, sindicais, etc. Por conta disso tudo, a participação democrática não é eficiente, nem direta, nem livre.

Conforme Giddens (1995, p. 129), a "democracia representativa significa o governo de grupos distantes do eleitor comum e com freqüência é dominada por insignificantes questões de política partidária". Segundo ele, na política atual as pessoas não se preocupam  com o que acontece por trás do palco. Diversas formas de clientelismo e a corrupção mais absoluta permanecem e tornam-se, no seio da liderança política, a forma corriqueira de agir.  Impostos e outros tributos têm outras destinações sem explicação alguma para onde vai tal dinheiro.

A própria lei, freqüentemente, não é resultado de uma vontade geral, mas obra de uma coalização facciosa que se dispôs a seguir uma maioria para consagrar seu interesse particular, como já dizia Rousseau (1991).

Por outro lado, os regimes democráticos instaurados recentemente não conseguiram eliminar a exclusão social. De acordo com Santos (2007), pesquisas recentes feias na América Latina revelaram que em determinados países a maioria da população preferiria viver sob uma ditadura, desde que lhe fosse assegurada boas condições de vida. Os cidadãos sentem-se cada vez menos representados pelos partidos, que não seguem seus programas eleitorais. Se a desigualdade social continuar aumentando no ritmo das três últimas décadas, transformará a igualdade jurídico-política entre os cidadãos, um ideal republicano, numa hipocrisia social legitimada.

No Brasil, conforme Benevides (1994), não temos uma cidadania efetivamente democrática. As reformas sociais não foram feitas pelo povo e os direitos do cidadão são entendidos como concessões, não como prestações legítimas para cidadãos livres e iguais perante a lei. Os direitos trabalhistas foram "doados" ao povo, por Getúlio Vargas, no Estado Novo, e as reformas institucionais, feitas parcialmente, não mudaram verdadeiramente o acesso à justiça, à segurança, à distribuição de renda, à previdência social, à educação e à saúde. Concessões como alternativas a direitos configuram uma cidadania passiva e excludente.

Para a referida autora, a representação política no Brasil é resultado de um Estado patrimonialista, onde predomina o coronelismo e o clientelismo. As eleições para os cargos executivos são mais valorizadas que para os Legislativo, o que leva a práticas populistas, de salvacionismo e de favor. A fragilidade ideológica e programática dos partidos leva à crença na sua indiferença e oportunismo, o que é confirmado pelas pesquisas de opinião. A irresponsabilidade do representante em relação ao povo representado, em relação às promessas de campanha e ao programa eleitoral é um abuso para o qual não se prevê solução. Assim:

a representação no Brasil permanece, efetivamente, como uma representação no sentido teatral: a representação do poder diante do povo e não a representação do povo diante do poder. Nesse sentido, afasta-se da idéia de democracia com soberania popular. Na ausência de mecanismos de controle sobre o representante – como os vários tipos de mandato imperativo ou de recall, que vão da simples advertência à perda do mandato – como proceder? (BENEVIDES, 1994, p. 12)

Esses contrastes constituem desafios à democracia, que se não superados, podem acarretar seu descrédito como regime. A insuficiência da democracia representativa, pela eleição de representantes nos parlamentos e no Poder Executivo, não quer dizer que tal sistema é imprestável. As críticas a ele, em comparação com o sistema de democracia direta, não significam a defesa de sua ruína e o retorno ao despotismo, com ausência de eleições em quaisquer níveis. Servem para demonstrar que "no paradigma do Estado Democrático de Direito, a democracia representativa não basta, sendo imprescindíveis formas alternativas de exercício do poder pelo povo, inclusive para defesa de direitos das minorias" (PORTO, 2006, p. 187, grifo nosso).

O cidadão, além de ser alguém que exerce direitos, cumpre deveres ou goza de liberdades em relação ao Estado, é também titular, ainda que parcialmente, de uma função ou poder público (BENEVIDES, 1994).

Como solução, Giddens (1995, p. 132-133) propõe uma democracia dialógica, "uma situação em que existe uma autonomia desenvolvida de comunicação, e na qual essa comunicação forma um diálogo por meio do qual as políticas e atividades são moldadas." Para ele, (1995, p. 136-137) "o diálogo, livre do uso de coerção e ocupando um 'espaço público', [...] é o meio não só de resolver as disputas, mas também de criar uma atmosfera de tolerância mútua.  Ou seja, a própria estrutura do sistema democrático – ou do relacionamento – está aberta à discussão 'pública'." A democracia dialógica traria uma maior democratização, que dificultaria os desmandos daqueles que exercem o poder, na medida em que busca transformá-lo  em relacionamentos negociados.

Dahl (1987) entende que há dois eixos fundamentais na compreensão do problema: competição e participação política. Para se alcançar uma maior proximidade do ideal democrático, chamado por Dahl de poliarquia, é preciso que exista: a) direito de formular preferências; b) de expressar suas preferências aos concidadãos e ao governo através da ação individual e coletiva; c) de ter suas preferências igualmente consideradas na conduta do governo. Para que essas três condições ocorram, ele arrola oito garantias institucionais: 1) liberdade de formar e aderir a organizações; 2) liberdade de expressão; 3) direito de voto; 4) elegibilidade para cargos públicos; 5) direito de líderes políticos disputarem apoio; 6) fontes alternativas de informação; 7) eleições livres e idôneas; 8) instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam das eleições e de outras manifestações de preferências.(grifo nosso)

A cidadania precisa, assim, de instituições próprias, de espaços públicos onde possa ser ouvida a vontade do povo e onde este possa expressá-la, ou seja, espaços permanentes de expressão política, tais como partidos, sindicatos e órgãos do poder público. A cidadania passiva, outorgada pelo Estado, como favor e como tutela, deve ceder espaço à cidadania ativa, que institui o cidadão como portador de direitos e deveres e como criador de direitos em novos espaços de participação política (CHAUÍ, 1984).

Conforme Maquiavel (2007), o povo, a maior parte da população, não quer governar diretamente, mas não quer ser oprimida pelos que governam. O fato de alguém chegar ao poder, mesmo de forma legítima, não é suficiente para contentar os desejos de boa parte da população, pois se o governante é legítimo e não um tirano, isso é positivo, mas nada garante que ele não vá usurpar uma fatia de poder maior do que a que lhe foi concedida. Os homens são maus e estão sempre prontos a agir contra as leis, quando têm a ocasião, e é muito difícil conter a corrupção. Por isso, todos os que com prudência constituíram repúblicas, entre as coisas mais necessárias que ordenaram esteve a constituição de uma guarda da liberdade: e, dependendo do modo como esta seja instituída, dura mais ou menos tempo a liberdade do povo. Essa guarda deve ser feita pelo povo, pois sendo os populares encarregados da guarda de uma liberdade, é razoável que tenham mais zelo, pois, não podendo eles mesmos apoderar-se dela, não permitirão que outros se apoderem.

A sociedade, mesmo pluralista e aberta, com governantes eleitos por voto popular, está sujeita ao arbítrio dos poderosos, que controlam as instâncias de governo, através do poder econômico. Daí a necessidade de instituições que sejam um instrumento de promoção de justiça social, em prol dos interesses da sociedade e da democracia, com o objetivo de fazer prevalecer o interesse público em qualquer decisão ou medida governamental que for adotada.

Uma dessas instituições, no Brasil, é o Ministério Público, analisado a seguir.


3 O MINISTÉRIO PÚBLICO NO BRASIL

No Brasil a Constituição de 1988 estruturou o Ministério Público dando-lhe independência, autonomia e garantias para possibilitar um desempenho eficiente de suas funções. Conferiu-lhe importância e estrutura no Estado, destinando-lhe um papel na sociedade que não tem precedente nas Constituições anteriores.

Situou-o dentro de um capítulo próprio, intitulado "Das Funções Essenciais à Justiça" e conceituou-o como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da CF/88). Desse modo, a função jurisdicional do Estado não pode ser exercida sem o Ministério Público. No Direito Brasileiro, sempre que há um especial interesse a proteger, a lei lhe confere atribuição de defender esse interesse (PAES, 2003)

Com o processo de abertura democrática da sociedade moderna o Ministério Público ganhou autonomia para realizar exclusivamente o papel de defensor do povo, segundo Goulart (1998, apud PORTO, 2006, p. 95):

o Ministério Público muda de função ao transitar da sociedade política para a sociedade civil. Ou seja, desvincula-se do aparelho coercitivo do Estado (do aparato burocrático responsável pela dominação através da coerção) para integrar, no âmbito da sociedade civil, parcela das organizações autônomas responsáveis pela elaboração, difusão e representação dos valores e interesses que compõem uma concepção democrática de mundo e que atuam no sentido da transformação da realidade (os sujeitos políticos coletivos que buscam a hegemonia democrática na batalha ideológica que se trava no seio e através da sociedade civil).

Numa época em que o Poder Executivo vem assumindo, crescentemente, a atividade legislativa, até porque possui as condições técnicas e orçamentárias para tratar de temas complexos, os sistemas democráticos-representativos perdem cada vez mais importância na atividade de produção legislativa, o que fortalece a necessidade da existência de um órgão que deve velar pela conformidade das leis com as normas e princípios constitucionais. Num quadro político de economia transnacional que afeta a maioria das pessoas, os cidadãos politicamente ativos precisam reelaborar formas de ação coletiva para realizar uma democracia crescentemente participativa. Se os eleitos não mais decidem, os que oferecem exemplos de resistência tampouco precisam ser "eleitos" segundo os trâmites tradicionais eleitorais. Eles se legitimam pelo seu engajamento e pelo caráter aberto da discussão que travam. Por outro lado:

verifica-se que a pluralidade da soberania tem coincidido com a ampliação dos níveis de representação, que passam a compreender, além dos representantes do povo por designação eleitoral, os que falam, agem e decidem em seu nome, como a magistratura e as diversas instâncias legitimadas pela lei, a fim de exercer funções de regulação. Pode-se, portanto, falar com Rosanvallon em uma dupla representatividade: a funcional, derivada das leis, sobretudo da Constituição; e a procedural, emanada diretamente do corpo eleitoral, a única reconhecida pela visão monista do político (VIANNA & BURGOS, 2002, p. 370-371).

Segundo Lorenzetti (2003), a produção do direito pode dar-se de maneira ascendente, partindo da organização social, inclusive das ações do Ministério Público, e indo até o poder central. Essa forma de produção da norma jurídica, com participação do povo, representado por organizações sociais ou pelo Ministério Público, significa uma forma de exercício de democracia semi-direta que precisa ser ampliada. A combinação da representação política, eleitoral, com a funcional, legal, aumentará a influência da sociedade na política governamental e proporcionará um maior controle dos atos agentes públicos, evitando a prática de corrupção e favorecimentos pessoais.

O Ministério Público foi encarregado constitucionalmente de zelar pelo efetivo funcionamento dos serviços públicos, o que faz dele um espaço público para a solução de demandas e de acesso à justiça pelos movimentos sociais. Isso tem se dado através da prestação de assistência jurídica e informações a respeito de direitos, propositura de ações referentes a interesses difusos da sociedade, e busca da solução de conflitos por meio de procedimentos extrajudiciais, como recomendações e termos de ajustamento de conduta. Quanto mais independente ele for, melhor exercerá sua função e mais benefícios terá a sociedade.

Questiona-se se o Ministério Público é ou não um quarto poder, tendo Valadão (1973) abraçado a posição afirmativa, enquanto Mazzili (1998), cauteloso, preferiu dizer que a Constittuição de 1988 quase fez do Ministério Público um quarto poder.

Entendemos, porém, que o Ministério Público, se não é um quarto poder, deveria sê-lo, pois tem por função exercer o papel de moderador do exercício dos demais poderes da república.

O Brasil já conheceu um poder moderador, previsto na Constituição do Império, de 25 de março de 1824. O Poder Moderador era o quarto poder, exercido pelo Imperador, conforme previsto no art. 10 da Constituição Política do Império do Brasil de 1824:

Art. 10. Os Poderes Politicos reconhecidos pela Constituição do Império do Brazil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo, e o Poder Judicial.

Dentre as funções do Poder Moderador encontrava-se a de velar pela harmonia dos demais Poderes Políticos, segundo o art. 98 da Constituição de 1824:

Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organização Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos demais Poderes Politicos.

Essa atribuição, porém, é semelhante à prevista no art. 5º, inciso I, da Lei Complementar n. 75/93, Lei Orgânica do Ministério Público da União:

Art. 5º São funções institucionais do Ministério Público da União:

I - a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e dos interesses individuais indisponíveis, considerados, dentre outros, os seguintes fundamentos e princípios:

.........................................................................................................

e) a independência e a harmonia dos Poderes da União;

A defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais conjuga-se com a necessidade de garantir a independência e harmonia entre os Poderes da República. Dessa forma, pode-se dizer que o Ministério Público possui hoje uma atribuição semelhante à do Poder Moderador, na Constituição de 1824, relacionada à defesa da ordem jurídica e do regime democrático. Ele deve agir como um centro unificador do Estado, a fim de garantir o bom funcionamento do sistema político. Segundo Bobbio (1980, p. 202):

Quando falta um centro unificador, o sistema vai se desmantelando, como um relógio desmontado ou um corpo desmembrado. As várias partes do todo não conseguem mais fazer um conjunto. E quando deixa de ter conexão com o conjunto, cada pedaço termina por ficar fora do lugar. E não estando cada peça em seu lugar, o sistema fica desequilibrado, descentrado, e, conseqüentemente, funcionando mal.

Embora a Constituição não tenha tido a ousadia de tornar o Ministério Público um quarto poder, deu-lhe competências que refletem diretamente no exercício dos outros poderes, tornando-o com isso um verdadeiro moderador dos demais. Por outro lado, a divisão do poder em três seguimentos fechados é uma ilusão, pois os poderes só podem manter o equilíbrio se partilharem as mesmas áreas. Em todos os Estados que adotam a separação de poderes, cada poder legisla, administra e julga (GARAPON, 2001, apud PORTO, 2006).

As transformações que o Estado contemporâneo vem sofrendo na sua estrutura levou ao surgimento do chamado "Estado complexo", no qual os três poderes clássicos são insuficientes para cumprir com as exigências do Estado Democrático (GARCÍA-PELAYO, 1995, apud PAES, 2003)

Hoje, embora ainda prevaleça, por questão de organização técnica do poder, a teoria da separação dos poderes, a absoluta autonomia destes, no âmbito do Estado Democrático de Direito, não encontra amparo no texto constitucional e é insustentável nos termos da teoria que o inspirou. Segundo Passos:

A extrema polemicidade dos conflitos sociais – agora coletivos e difusos, não só individuais – gera necessidades inéditas de articulação política, que só podem ser atendidas mediante a criação e implementação de políticas públicas, estragégias decisórias e mecanismos processuais igualmente inéditos, os quais requisitam uma nova organização das estruturas e instituições estatais, bem como novas pautas de articulação política e negociação social entre os grupos representados (PASSOS, 2001, p. 464 apud GOMES, 2003, p. 113)

Mas para que o Ministério Público brasileiro possa desempenhar de forma eficiente o papel de moderador dos demais poderes e centro unificador do Estado, é preciso que seja alterado seu regime jurídico, para lhe assegurar novos instrumentos de atuação.

Instituições que existiram no passado podem servir de modelo a tal mudança, como o tribunato da plebe, que será apresentado a seguir.


4 O TRIBUNATO DA PLEBE

Segundo Alves (1995), em Roma, ao tempo da República, o Poder Executivo, até então pertencente ao rei, era exercido por dois magistrados: os Cônsules, eleitos anualmente pela Assembléia Centuriata. Eles presidiam o Senado e tinham funções administrativas e militares. Cada Cônsul possuía o poder de veto sobre a decisão do outro, assim, os patrícios evitavam o exercício do poder pessoal e, caso isso ocorresse, escolhia-se um Ditador com poderes absolutos, que governaria pelo prazo de seis meses, para pôr fim à instabilidade política e restabelecer a ordem.

O principal órgão da República era o Senado. Seus membros, descendentes dos primeiros fundadores de Roma, exerciam um cargo vitalício e tinham como prerrogativas preparar as leis, decidir pelo comando e recrutamento das tropas e resolver as questões referentes à política interna e externa do Estado Romano. Outros magistrados que compunham o corpo burocrático de Roma eram os Pretores, responsáveis pela justiça; os Censores, que promoviam o censo da população e tinham atribuições de controle da moralidade pública; os Questores, que fiscalizavam a cobrança de impostos e os Tribunos da Plebe.

O Tribunato da Plebe era a magistratura plebéia, não admitindo patrícios. O tribuno (do latim tribunu) atuava junto ao Senado em defesa dos direitos e interesses da plebe.

Conforme Fiuza (2006), essa magistratura foi criada após o movimento plebeu de 494 a.C., conhecido como Revolta do Monte Sagrado. A plebe não tinha acesso a magistraturas e, revoltada com o arbítrio dos magistrados patrícios, saiu de Roma, e se dirigiu ao monte Sagrado, com o objetivo de fundar ali uma nova cidade. Os patrícios, em face disso, resolveram transigir, e a plebe retornou, após obter a criação de duas magistraturas plebéias: o tribunato e a edilidade da plebe.

Os tribunos (a princípio dois; mais tarde passaram a quatro, cinco e dez em 471 a.C.) eram os representantes da plebe, eleitos pelos Conselhos da Plebe (Consilia Plebis). Convocavam os concílios desta e os comícios-tributos e, diante dessas assembléias populares, apresentavam proposições de caráter político, administrativo e militar. Com os tribunos, os plebeus ficavam garantidos contra a arbitrariedade dos magistrados patrícios, pois os tribunos - cuja inviolabilidade pessoal lhes era conferida por lei sagrada - detinham o poder de intercessio, ou seja, podiam vetar, exceto durante guerras, ordens ou decisões dos magistrados patrícios (como o cônsul e os senadores), além de poderem interferir nas eleições, convocações dos Comícios e outros atos de interesse público; podiam impedi-los, por exemplo. Só contra o ditador não podiam exercer o poder de veto. Esse veto, entretanto, podia ser neutralizado pela ação de outro tribuno mais dócil ao patriciado (ALVES, 1995).

Segundo Fiuza (2006), não possuíam o ius imperii, nem atribuições administrativas. Não podiam convocar o Senado e os Comícios, não possuíam nem insígnias nem honrarias, tais como lictores. Não se assentavam na cadeira curul (cadeira de marfim e ouro, símbolo das altas magistraturas, como consulado, pretura, edilidade curul, ditadura). Os tribunos podiam ser procurados por qualquer pessoa que se julgasse injustiçada, daí suas casas ficarem abertas dia e noite.

Aos tribunos se deve a iniciativa da Lei das XII Tábuas, a permissão de casamento entre patrícios e plebeus (Lex Canuleia, de 445 a.C., proposta pelo tribuno Canuleius). Não obstante tenha perdurado por todo o principado, as funções dessa magistratura, que vinham da república, se transferiram para os imperadores, a partir de Augusto.

Segundo Maquiavel (2007), Roma buscou em suas instituições uma forma de acolher a imperfeição e a contingência do mundo, no lugar de negá-las. Os tumultos entre os nobres e a plebe acabaram sendo a primeira causa da liberdade em Roma. Para ele, a criação do tribunato tornou a divisão de poderes mais estável em Roma, e ocorreu porque o povo estava farto do governo dos reis, razão pela qual fez-se instrumento de quem quer que tivesse em mente destruí-los. Logo que surgiu alguém com esse intuito, a multidão o fez, e estando ainda viva na memória do povo as injúrias recebidas pelo príncipe, ordenou-se um estado popular no qual a autoridade não fosse dada nem a poucos poderosos nem a um só. Assim:

aqueles que os depuseram, ao constituírem imediatamente dois cônsules para ficarem no lugar dos reis, na verdade depuseram em Roma o nome, mas não o poder régio: de tal forma que, como só tivesse cônsules e senado, aquela república vinha a ser mescla de duas qualidades das três acima citadas, ou seja, principado e optimates. Faltava-lhe apenas dar lugar ao governo popular: motivo por que, tornando-se a nobreza romana insolente pelas razões que abaixo se descreverão, o povo sublevou-se contra ela; e, assim, para não perder tudo, ela foi obrigada a conceder ao povo a sua parte, e, por outro lado, o senado e os cônsules ficaram com tanta autoridade que puderam manter suas respectivas posições naquela república. E assim se criaram os tribunos da plebe, tornando-se assim mais estável o estado daquela república, visto que as três formas de governo tinham sua parte.[...] permanecendo mista, constituiu-se uma república perfeita (MAQUIAVEL, 2007, p. 18-19, negrito nosso).

Os tribunos foram constituídos para guardar a liberdade romana. Para segurança da plebe os romanos ordenaram-lhes tanta preeminência que a partir de então puderam ser sempre intermediários entre a plebe e o senado. A ordenação do Estado romano passou a ser a autoridade do povo, do senado, dos tribunos, dos cônsules, os modos de candidatar-se e de eleger magistrados e de fazer a lei (MAQUIAVEL, 2007).

Depois da criação dos tribunos, aos poucos, vários direitos foram concedidos à plebe. Em 445 a.C., através da Lei Canuléia, foi estabelecida a possibilidade de casamentos entre os plebeus e os membros da aristocracia patrícia. Posteriormente, a Lei Licínia pôs fim à escravidão por dívidas, proibindo, a partir do ano de 367 a.C., que os plebeus endividados fossem escravizados pelos proprietários rurais. Neste mesmo documento estava previsto também o acesso dos plebeus ao Consulado. Com a Lei Licínia passaram a ser eleitos dois cônsules: um patrício e outro plebeu. Através da Lei Ogúlnia (300 a.C.), os plebeus obtiveram igualdade religiosa, com direito a acesso aos colégios sacerdotais e, finalmente, em 287 a.C., através da Lei Hortência, a plebe obteve direito às resoluções da assembléia popular, o plebiscito adquiriu força de lei, independentemente da aprovação do Senado.

Os tribunos eram eleitos e tinham atribuições e prerrogativas políticas muito importantes, como poder de apresentar projetos de lei, o direito de vetar leis votadas pelo Poder Legislativo e imunidade pessoal.

Mas os tribunos não tiveram apenas o papel de defesa da plebe. Exerceram também a função de acusadores em lides criminais, o que a princípio era facultado a qualquer cidadão na Roma antiga (PAES, 2003).

Essa atribuição tinha a ver com a função que acabaram abraçando, de verdadeiros defensores da lei e da ordem jurídica. Desse modo, embora a acusação criminal não fosse uma atribuição específica sua, a defesa dos interesses da plebe por vezes equivalia a defender o cumprimento das leis, e a pedir a punição daqueles que a violavam perante os tribunais. Nesse sentido, Maquiavel narra o exercício de tal função pelos tribunos:

pode-se facilmente verificar o benefício, para as repúblicas, da faculdade de denunciar, que, entre outras coisas, era confiada aos tribunos [...] Aos que recebem a guarda da liberdade numa cidade não se pode conferir autoridade mais útil e necessária do que a de poder acusar perante o povo ou qualquer magistrado ou conselho os cidadãos que porventura pecassem de algum modo contra o estado livre. Essa ordenação tem dois efeitos utilíssimos para uma república. O primeiro é que os cidadãos, por medo de serem acuados, nada intentam contra o estado; e intentando, são reprimidos de imediato e sem consideração. O outro é que se permite o desafogo daqueles humores que de algum modo cresçam nas cidades contra qualquer cidadão: e, quando tais humores não têm como desafogar-se por modos ordinários, recorre-se a modos extraordinários, que levam toda a república à ruína. Por isso, nada há que torne mais estável e firme uma república do que ordená-la de tal modo que a alteração dos humores que a agitam encontre via de desafogo ordenada pelas leis. E isso pode ser demonstrado com muitos exemplos, máxime com o que Tito Lívio (décadas, II, 34-350) fala de Coriolano, quando diz que estava a nobreza romana irritada com a plebe, por lhe parecer que esta tinha excessiva autoridade, devido à criação dos tribunos que a defendiam, quando Roma enfrentou grande penúria de víveres, como acontece, e o senado mandou buscar cereais na Sicília; Coriolano, inimigo da facção popular, sugeriu que chegara a hora de castigar a plebe e de privá-la da autoridade de que ela se apoderara para prejuízo da nobreza, mantendo-a com fome não lhe dando trigo: declaração que, chegando aos ouvidos do povo, provocou tanta indignação contra Coriolano, que este, ao sair do senado, teria sido morto tumulturiamente, se os tribunos não o tivessem intimado a comparecer diante dos tribunais e defender sua causa. Acontecimento este sobre o qual se deve notar o que acima dissemos, a respeito da utilidade e da necessidade de as repúblicas, com suas leis, permitirem o desafogo da ira que o povo vota a um cidadão.(Maquiavel, 2007, p. 32-34)

Outro exemplo, comentado por Maquiavel a partir da obra de Tito Lívio, é o da acusação que os tribunos fizeram contra Mânlio Capitolino:

Exemplo muito maior que esse é o de Mânlio Capitolino, porque nele se vê como a virtù de alma e corpo, como as boas ações realizadas em favor da pátria são anuladas pela torpe cupidez de reinar; esta, como se vê, nasceu nele da inveja que sentia das honras prestadas a Camilo; e chegou a tal ponto a cegueira de sua mente que, não pensando no modo de vida da cidade, não examinando o sujeito dele, que não era adequado a receber ainda uma má forma, pôs-se a criar tumultos em Roma contra o senado e contra as leis pátrias. Donde se percebe a perfeição daquela cidade e a bondade de sua matéria: porque, no seu caso, ninguém da nobreza, conquanto fosse acerbos defensores um do outro, se moveu para favorecê-lo; nenhum dos parentes se empenhou em seu favor; os dos outros acusados costumavam comparecer, vestidos de luto, de preto, todos tristes para tentar conseguir misericórdia para os acusados, mas com Mânlio não se viu ninguém. Os tribunos da plebe, que sempre costumavam favorecer as coisas que pareciam vir em benefício do povo, e quanto mais tais coisas contrariavam os nobres, mais as favoreciam, nesse caso se uniram com os nobres, para debelarem uma praga comum. O povo de Roma, ciosíssimo do que era útil para ele e amante de tudo o que desfavorecesse a nobreza, embora sempre tivesse favorecido Mânlio, quando os tribunos o citaram, para que sua causa fosse julgada pelo povo, esse mesmo povo, deixando de ser defensor para tornar-se juiz, condenou-o à morte sem nenhuma consideração (MAQUIAVEL, 2007, p. 348, negrito nosso).

Dessa forma, segundo Maquiavel, o tribunato era um órgão moderador dos interesses na República romana:

Quando Tito Quinto Cincinato e Cneo Júlio Mento eram cônsules em Roma a desunião que surgiu entre eles impediu todas as ações daquela república. O senado, apercebendo-se, estimulava-os a instituir um diator, para que este fizesse o que aqueles não podiam fazer, devido às suas discórdias. Mas os cônsules, embora discordantes em tudo, concordavam em não querer o ditador. A tal ponto que o senado, não encontrando outro remédio, rrecorreu à ajuda dos tribunos, que, com a autoridade do senado, forçaram os cônsules a obedecer. É notar, nisso [...] a utilidade do tribunato, que não servia apenas para refrear a ambição dos poderosos contra a plebe, mas também a ambição dos poderesos contra si mesmos [...] (MAQUIAVEL, 2007, p. 147, negrito nosso)

O tribunato da plebe, assim, exerceu tanto a função de defensor dos interesses do povo, como de acusador em lides penais, quando necessário, assim como de defensor da ordem pública e da harmonia entre os poderes.

E como facilmente se percebe, tais funções são muito parecidas com as exercidas atualmente pelo Ministério Público, principalmente no Brasil, onde ele age de forma independente, com características de um verdadeiro agente político.

Jean Jacques Rousseau percebeu essa formidável característica do tribunato e fez observações sobre o mesmo, propondo a criação de uma instituição semelhante, e mais próxima ainda do Ministério Público atual, como será visto abaixo.


5 O TRIBUNATO SEGUNDO ROUSSEAU

Como uma das magistraturas mais importantes da Roma antiga, o tribunato modelo inspirou o pensador Jean Jacques Rousseau a idealizar um órgão com as mesmas atribuições e poderes, para a defesa do regime democrático.

Após estudar a história de Roma e suas instituições políticas, Rousseau (1991) imaginou um órgão estatal com função semelhante ao antigo tribunato da plebe. Eis o o que escreveu a respeito:

Quando não se pode estabelecer uma proporção exata entre as partes constitutivas do Estado, ou quando causas idestrutíveis lhes alteram incessantemente as relações, institui-se então uma magistratura particular que absolutamente não forma corpo com as outras, que torna a colocar cada termo na sua verdadeira relação e que estabelece uma ligação ou um termo médio quer entre o príncipe e o povo, quer entre o princípe e o soberano, ou ainda, simultaneamente, caso seja necessário, de ambos os lados.

Esse corpo, que chamarei de tribunato, é o conservador das leis e do poder legislativo. Serve, algumas vezes, para proteger o soberano contra o Governo, como em Roma faziam os tribunos do povo; outras vezes, para sustentar o Governo contra o povo, como atualmente em Veneza faz o Conselho dos Dez, e, outras vezes ainda, para manter o equilíbrio de um lado e de outro, como os éforos o faziam em Esparta.

O tribunato não é certamente uma parte constitutiva da pólis e não deve ter nenhuma porção do poder legislativo nem do executivo, e nisso exatamente está seu maior poder, pois, não podendo fazer nada, tudo pode impedir. É mais sagrado e mais reverenciado, como defensor das leis, do que o princípe que as executa e o soberano que as dá. Foi o que se viu, muito claramente, em Roma, quando aqueles patrícios orgulhosos, que sempre desprezaram o povo, se sentiram forçados a curvar-se diante de um mero funcionário do povo que não tinha nem auspícios nem jurisdição.

O tribunato sabiamente equilibrado representa o mais firme apoio de uma boa constituição, mas, por menor que seja a força que possua em demasia, tudo subverte; quanto à fraqueza, ela não está em sua natureza: desde que seja algo, nunca é menos do que deveria ser.

Degenera em tirania quando usurpa o poder executivo, de que é unicamente o moderador, e quando quer outorgar leis, que apenas deve proteger (ROUSSEAU, 1991, p. 131-132, negrito nosso).

Para Rousseau (1991), a função do tribunato é verificar se o poder soberano, pertencente ao povo, é utilizado pelo governo no interesse público. Ele considerava tal instituição mais sagrada e digna de reverência que a do príncipe, que executa as leis, e a do Senado, que as dá.

A semelhança dessa instituição, conforme a visão de Rousseau, com o Ministério Público Brasileiro, será analisada no item seguinte.


6 TRIBUNATO E MINISTÉRIO PÚBLICO

Embora o tribunato proposto por Rousseau não seja o mesmo tribunato da plebe, existe uma grande semelhança entre eles, assim como com o Ministério Público.

De fato, Rousseau disse que o tribunato não faria parte da pólis e não deveria possuir qualquer porção de poder executivo ou legislativo. Ora, a configuração atual do Ministério Público brasileiro é aproximadamente esta. Ele não faz parte dos Poderes executivo, legislativo ou judicial, nem possui poder de executar as leis ou de legislar. Só administra os recursos públicos destinados à sua própria manutenção, por conta da sua autonomia orçamentária (art. 127, § 2º, da CF/88, com redação dada pela EC n. 19/98)).

Assim como o tribunato, o Ministério Público tem a função de "sustentar o governo contra o povo", através da responsabilização criminal dos infratores da Lei (ele tem a privatividade da ação penal pública). Mas também é um defensor do povo, uma vez que tem legitimidade para propor ações civis públicas que visem beneficiar a sociedade, assegurando a proteção de direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos, tais como educação, saúde, moradia e assistência social (art. 129, incisos I, II e III, da CF/88).

Rousseau escreveu que o tribunato, "não podendo fazer nada, tudo pode impedir", o que entendemos ser uma das melhores maneiras de definir a maneira de atuar do Ministério Público em defesa da democracia e da sociedade. Embora os membros do Ministério Público não tenham o poder de veto, tal como o possuía o tribuno, podem propor ações para impedir atos ilegais ou contrários ao interesse público, assim como expedir recomendações e celebrar termos de ajustamento de conduta com o mesmo fim.

Outra semelhança entre os dois órgãos é a função de verificar a conformidade das leis editadas com a ordem jurídica. No caso dos tribunos, o controle que se fazia era baseado na existência de prejuízo à plebe em determinada lei ou decisão. No caso do Ministério Público, este deve observar se as leis e as decisões da administração pública estão em conformidade com a Constituição Federal. De tal modo, sendo a isonomia e a busca da igualdade social princípios constitucionais a serem seguidos por qualquer lei ou decisão administrativa, tais atribuições acabam se equiparando. A diferença estaria apenas na forma de atuação: o tribuno da plebe atuava de forma independente e podia propor ou vetar leis. Já o Ministério Público necessita propor uma ação direta de inconstitucionalidade/constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal ou os Tribunais de Justiça (no caso de leis estaduais).

Rousseau entendia que o tribunato não poderia constituir um corpo permanente, para prevenir abusos e usurpação de poder. Segundo ele:

O melhor meio de prevenir as usurpações de um corpo tão temível – meio sobre o qual nenhum Governo até hoje refletiu – seria não tornar esse corpo permanente, mas estabelecer certos intervalos durante os quais ficaria suprimido. Tais intervalos, que não devem ser suficientemente grandes para permitir que os abusos encontrem tempo de ser fortalecer, pode ser fixados pela lei de modo a tornar fácil, caso necessário, o abreviá-los por meio de comissões extraordinárias. Esse meio me parece sem inconvenientes, porque, como já disse, não fazendo o tribunato parte da constituição, pode ser afastado sem que ela sofra com isso. Tal coisa me parece muito eficaz, pois que um magistrado, novamente reinstalado, assim não parte em absoluto do poder de que dispunha um seu predecessor, mas daquele que a Lei lhe dá (ROUSSEAU, 1991, p. 132-133).

O receio de Rousseau de que a instituição seja permanente decorre do poder que ela teria, igual ao dos antigos tribunos da plebe, de vetar leis, decisões do poder Executivo e do Poder Judiciário.

Entretanto, na instituição que entendemos adequada a um regime democrático, tais medidas só poderiam ser tomadas pelo titular de todo o poder: o povo, através dos mecanismos de democracia direta, quais sejam: plebiscito e referendo. Por meio de um plebiscito ou referendo o povo tem o poder de vetar leis, derrubar decisões do Poder Executivo e até do Poder Judiciário, pois este exerce uma parcela do poder soberano, que pertence, num regime republicano, ao povo. Se o poder soberano pertence ao povo, este pode tornar inválida até uma decisão judicial.

Mesmo assim, apesar de todas essas semelhanças, não existe uma igualdade de poderes entre o tribunato e o Ministério Público. Este não pode vetar qualquer decisão do Poder Público por conta própria. Sequer pode aplicar uma multa num procedimento administrativo, mesmo se se deparar com uma ilegalidade praticada por agentes públicos em algum procedimento de sua competência. Nesse caso, pode tão só recomendar a correção do ato. E o controle da constitucionalidade das leis fica a cargo do judiciário.

Ocorre que, para corrigir os males da democracia representativa, garantindo o respeito à soberania popular, à vontade do povo, uma vez que o Poder Executivo exerce um papel de preponderância em relação aos Poderes Legislativo e Judiciário, acreditamos que é preciso restabelecer, na instituição Ministério Público, alguns dos poderes dos antigos tribunos da plebe, de forma que se possa estabelecer um "termo médio entre o príncipe o povo".

O Ministério Público já é um espaço público onde a população pode expressar seus desejos e reclamações a respeito da gestão dos governantes e dialogar com seus representantes, mas só exercerá a função de defensor da democracia e da sociedade, como um novo tribunato, se lhe forem assegurados mais alguns poderes.


7 TRIBUNATO E DEFENSORIA PÚBLICA

O tribunato não deve ser confundido com a defensoria pública. Mesmo o antigo tribunato da plebe não exerceu as mesmas funções da defensoria pública, conforme suas atribuições atuais, que são, segundo o art. 134, caput, da CF/88, prestar orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados.

Isso porque o tribuno da plebe atuava no interesse do povo, de modo amplo. O poder de veto, que podia ser exercido contra decisões que prejudicavam o interesse da plebe, era um instrumento de controle político, em questões de interesse geral.

O tribuno defendia os interesses da plebe, que constituía a maior parte da população de Roma, de forma semelhante como atualmente o faz o Ministério Público. Até por serem poucos (o número de tribunos variou de 2 a 10 durante toda a República Romana), os tribunos reservavam-se para atuar em questões nas quais o interesse público geral sobressaia.

Desse modo, o tribunato da plebe assemelha-se, na atualidade, muito mais ao Ministério Público que à Defensoria Pública, em razão da defesa dos interesses difusos ou coletivos. Além disso, como já comentado, tamanha era a liberdade de ação política por parte do tribuno que ele exerceu a função de acusador em diversos momentos, o que é inconcebível em relação à defensoria pública.


8 O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO NOVO TRIBUNATO

Recentemente, a Defensoria Pública recebeu a competência de poder propor ações civis públicas, uma das principais atribuições do Ministério Público, embora não exclusiva.

Embora caiba ao MP a privatividade da ação penal pública, competência muito importante, cabe-lhe, acima de tudo, defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis, como previsto no art. 127, caput, da Constituição Federal de 1988.

O Ministério Público, sendo detentor de tais deveres, pode ter seu regime jurídico alterado, para melhor realizá-los. Às suas prerrogativas e atribuições atuais podem ser somadas outras. Uma vez que ele é o defensor da sociedade, da ordem jurídica e do regime democrático, deveria, por exemplo, poder apresentar projetos de lei de interesse social, através do Procurador-Geral da República. Se ele é o defensor da sociedade, também deveria poder propor leis em benefício desta.

Por outro lado, imagine-se uma lei votada pelo Congresso Nacional que seja inconstitucional ou injusta, prejudicial à sociedade, mas ainda assim receba a sanção do Presidente da República e não seja declarada inconstitucional pelo Poder Judiciário. Ou uma situação contrária: uma lei benéfica, que atende aos interesses sociais e aos princípios constitucionais, mas que seja vetada pelo Poder Executivo. Caso o Congresso Nacional não derrube tal veto, o que na prática dificilmente ocorre, uma vez que o Governo controla boa parte do Poder Legislativo, poderia o povo, através de um plebiscito ou referendo, apreciar diretamente a legitimidade da lei que se acredita injusta, convocado pelo Ministério Público.

Os instrumentos de democracia direta podem encontrar no Ministério Público uma forma de serem deflagrados, de modo que a sociedade possa apreciar as decisões de seus representantes, uma vez que todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido, e o Congresso Nacional não tem realizado um controle eficaz sobre o Poder Executivo, conforme Medauar (2007):

registra-se descrença genérica quanto à eficácia e mesmo operacionalidade da fiscalização parlamentar. Paradoxal, assim, que se afirme, ao mesmo tempo, a relevância da função de controle do Legislativo e a escassez de resultados dessa atuação. Salvo atuações episódicas (no Brasil, impeachment de um Presidente da República), o controle parlamentar da Administração apresenta-se inefetivo. Vários fatores vêm apontados para justificar esse quadro: falta de interesse político na realização concreta e eficaz da vigilância, para não desagradar ao detentor do Poder Executivo; ausência, em geral, de sanção, pois nem o Congresso, nem suas comissões podem anular ou modificar atos administrativos ou aplicar sanções a administradores.

Dessa forma, o Procurador-Geral da República, representante maior do Ministério Público, escolhido pelo Presidente da República dentre integrantes da carreira, poderia ter legitimidade para, dentro do atual sistema democrático, apresentar projetos de lei ou convocar plebiscito e referendo.

Além disso, o Procurador-Geral poderia ser escolhido por voto popular, entre os membros da classe. Assim teria mais independência em relação ao Poder Executivo e aos demais poderes do Estado. Esse processo não traria qualquer prejuízo à vedação ao membro do Ministério Público de exercer atividade político partidária, uma vez que os candidatos a PGR só poderiam concorrer ao cargo de Procurador-Geral, e a mais nenhum outro, para o que não seria preciso se filiar a partido político.

Também poderia continuar o mesmo processo de escolha atual. Se os Ministros do Supremo Tribunal Federal não são eleitos e podem declarar uma lei inconstitucional, não haveria porque não poder o Procurador-Geral da República convocar plebiscito para apreciiar a constitucionalidade de uma lei.

Além de poder propor leis e convocar o povo, o Ministério Público precisa ter meios mais eficazes de fiscalizar os outros poderes e a administração pública. No momento, o Ministério Público apenas recomenda a correção de irregularidades. Se não for atendido, tem que ir ao judiciário para impedir sua ocorrência.

Melhor seria, então, que o membro do Ministério Público tivesse o poder de paralisar, sem necessidade de recorrer ao judiciário, atos manifestamente ilegais de autoridades públicas, que violem a ordem jurídica, o regime democrático ou os direitos fundamentais dos cidadãos. O Ministério Público não deveria ter que precisar, todas as vezes que não é atendido, recorrer ao judiciário.

Essas e outras propostas serão apresentadas a seguir, com mais detalhes, para melhor apreciação e crítica.


9 COMPETÊNCIAS QUE PODEM SER ATRIBUÍDAS AO MINISTÉRIO PÚBLICO

O pleno desenvolvimento da democracia brasileira reclama um incremento das funções do Ministério Público, para que ele possa possa melhor exercer o papel de defensor do regime democrático e dos direitos do cidadão.

A seguir iremos apresentar algumas sugestões nesse sentido.

1 – propor leis ordinárias de interesse público ou social, assim como propostas de emenda à Constituição, com o mesmo teor;

Conforme Alves (1995), as leis em Roma eram votadas nos comícios por centúrias e por tribos, que não se confundiam com as assembléias da plebe, concilia plebis, onde só votava a plebe, convocada pelos seus magistrados: o tribuno e o edil. Suas deliberações eram chamadas de plebiscito.

Os tribunos tinham o direito de apresentar resoluções, diante das assembléias da plebe, com caráter administrativo, político ou militar. Depois de 286 a.C. os plebiscitos passaram a ter força de lei e os tribunos tinham a atribuição tanto de propor como de vetar leis.

Tomando este exemplo, bem poderia ser possível ao Ministério Público convocar plebiscito e referendo, uma vez que exerce a função de defensor da democracia e da sociedade como um todo.

Como órgão do Estado, o Ministério Público se confunde com ele, uma vez que, como outros organismos estatais, sua existência está ligada à pessoa jurídica do Estado, com autonomia de vontade e objetivos que também fazer parte deste.

O Ministério Público tem como função a defesa dos direitos sociais e garantir que os poderes públicos respeitem os direitos assegurados na Constituição ao povo. Ele é uma das instituições que garantem o desenvolvimento do regime democrático, acompanhando de perto o processo eleitoral, a fim de que as políticas governamentais dependam de eleições e respeitem a manifestação do povo. Dessa forma, ninguém melhor para ter a competência para apresentar projetos de lei de interesse social que o Ministério Púlblico.

2 – sustar atos de agentes do Poder Executivo que violem os direitos fundamentais ou exorbitem do poder regulamentar;

Pode-se alegar que atribuir tal competência ao Ministério Público violaria o princípio da separação de poderes, e que seria inconstitucional. Além disso, o Ministério Público não é órgão do Poder Judiciário, então, não poderia tornar sem eficácia atos do Poder Executivo, expedidos no exercício de sua competência administrativa ou regulamentar.

Acontece que já há previsão expressa da atribuição de tal competência a dois órgãos na Constituição Federal, que não compõem o Poder Judiciário. O primeiro é o Congresso Nacional, que tem a atribuição de:

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

V – sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa;

Ao que sabemos, tal competência praticamente não tem sido exercida pela Congresso. Isso é um bom motivo para que seja dividida com o Ministério Público, que certamete a exerceria de forma prudente e eficaz, com a possibilidade de controle por parte do Poder Judiciário, em caso de abuso.

Além do congresso nacional, tem a competência de tornar sem efeitos atos do Poder Executivo o Tribunal de Contas da União. O art. 71 da Constuição Fedeal diz que compete ao TCU:

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxilio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:

IX – assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se vericada ilegalidade;

x – sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal;

Vê-se, assim, que embora o Tribunal de Contas da União não seja parte do Poder Judiciário, pode sustar a execução de atos ilegais que digam respeito à gestão de recursos públicos, após ultrapassado o prazo concedido para regularização do problema.

Então, também poderia o Ministério Público, que tem a atribuição de defender os interesses da sociedade, os direitos fundamentais, o regime democrático, os mais diversos interesses sociais, poder sustar a execução de um ato ilegal ou inconstitucional, que fira um direito fundamental do cidadão, ou que viole os princípios democráticos.

Tal competência não ficaria fora da possibilidade de controle pelo Poder Judiciário, em caso de incorreto exercício. Assim, não há argumento jurídico válido que impeça que tal competência também seja atribuída ao Ministério Público, o que tornaria mais eficiente e eficaz a defesa dos direitos que as leis freqüentemente lhe impõem, assim com da própria ordem jurídica, função especial que lhe é atribuída.

3 – convocar plebiscito e referendo para aprovação de leis, atos do Poder Executivo ou decisões judiciais;

Segundo Ferreira Filho (2006, p. 96), plebiscito é uma "consulta extraordinária e excepcional exprimindo a opinião popular sobre medidas de base ou de princípio, tais como forma de Estado ou de governo, etc." Já o Referendo é "a decisão popular sobre lei discutida e votada pelos representante do povo. O cidadão, ao votar sim ou não a respeito do projeto oriundo do Parlamento, daria aceitação ou rejeição à medida legislativa proposta"(2006, p. 96).

Embora fosse possível pensar na possibilidade do Procurador-Geral da República poder vetar leis, tal como o fazia o tribuno da plebe, considerando que atualmente o Presidente da República é quem possui a competência de vetar leis, por questão de interesse público, outra atribuição, mais democrática, pode ser pensada.

Assim como o antigo tribuno podia convocar os comícios da plebe, onde eram votados os plebiscitos, poderia o Procurador-Geral da República ou o Procurador-Geral de Justiça nos Estados, poder convocar plebiscito ou referendo, para que o povo apreciasse uma lei que pudesse contrariar os interesses sociais, e não fosse declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal ou vetada pelo Presidente da República.

O povo, mediante plebiscito, poderia igualmente apreciar decretos do Presidente da República e decisões dos tribunais superiores, como o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça.

Exemplos desse instrumentos de democracia direta, pouco utilizados: consulta sobre o sistema de governo, ocorrida em 21/4/1993 e o plebiscito referente à proibição de comercialização de armas de fogo.

A forma de convocação, disciplinada em lei, estabeleceria requisitos como prévia aprovação por órgão colegiado do Ministério Público, assim como o número de vezes que poderia ocorrer ao ano. A convocação de plebiscito ou referendo também poderia ser feita pelo Congresso Nacional, por proposta do Ministério Público.

Institutos de democracia direta tão importantes como esse não devem ter seu uso dependente, exclusivamente, da iniciativa do Congresso Nacional. O Ministério Público, como defensor da democracia e dos direitos do cidadão, também deveria ter o poder de suscitá-los, mesmo que dependesse tal ato de autorização do Congresso Nacional, pois o povo é o verdadeiro detentor do poder:

Art. 1º. Omissis.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

A possibilidade de se ampliar a possibilidade de participação popular no cenário político, através do uso de instrumentos como referendo e plebiscito, foi defendida por Benevides (1994, p. 9-10):

tenho discutido a possibilidade, no Brasil, de se ampliarem os direitos políticos para a participação direta do cidadão no processo das decisões de interesse público. É esse o sentido da defesa que faço dos mecanismos institucionais referendo, plebiscito e iniciativa popular, acolhidos na nova Constituição brasileira. Levando-se em conta a importância de tais institutos, creio que a seu respeito ainda há muito o que discutir e propor.

Isso possibilitaria ao povo brasileiro um maior controle sobre a atividade de seus representantes, nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, o que contribuiria para a efetividade do regime democrático e tornaria o povo mais presente na vida política da nação.

4 – aplicar multas em processos administrativos de sua competência, que envolvam direitos do cidadão;

A necessidade de o Ministério Público recorrer ao Poder Judiciário para a impor qualquer providência faz dele uma instituição fraca, além de constituir um contratempo.

Quando, há, por exemplo, uma denúncia de violação a direitos do cidadão ou de ilegalidade numa atuação administrativa, o órgão do Ministério Público, após uma análise minuciosa da questão, mesmo que conclua que houve violação a direitos humanos fundamentais, não pode impor qualquer sanção ao órgão público que o causou, nem desconstituir o ato respectivo. Cabe-lhe apenas notificar o responsável para que tome as providências necessárias para prevenir a repetição ou determinar a cessação do ato ilegal, e caso não seja atendido, representar ao poder competente para adotar as providências necessárias para responsabilizar a autoridade pela ação ou omissão inconstitucionais, na forma dos arts. 13, 14 e 15 da Lei Complementar n. 75/93:

Para melhorar tal sistema, poderia ser assegurada ao representante ministerial a possibilidade de impor multas em processo administrativos, em caso de violação aos direitos do cidadão, ou o poder de desconstituir os atos administrativos respectivos.

Se um guarda de trânsito pode impor uma multa, unilateralmente, caso constate uma violação de regra de trânsito, porque não poderia o representante do Ministério Público impor multa em processo administrativo, caso verificasse uma ilegalidade ou violação a um direito fundamental do cidadão?

Pode-se alegar que o Ministério Público não possui o poder de impor multas ou desconstituir atos administrativos, pois não faz parte do Poder Executivo. Ocorre que os Tribunais de Contas igualmente não fazem parte do Poder Executivo e podem impor multas ao agente responsável pela ocorrência de dano ao patrimônio público, na forma do art. 71, inciso VIII, da CF:

Art. 71. Omissis.

VIII – aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;

E mesmo sem expressa previsão constitucional, já há casos nos quais o Ministério Público exerce poder de polícia e pode aplicar multas aos infratores da Lei. Isso ocorre quando há vinculação entre o Ministério Público e os PROCONS – Programa de Proteção e Defesa do Consumidor, como no Estado do Piauí, conforme a Lei Complementar Estadual n. 36/2003, de 09/01/2004:

Art. 1º- Fica, na forma desta Lei, transformado o Serviço de Defesa Comunitária – DECOM/MP, em Programa de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério Público do Estado do Piauí – PROCON/MP-PI, órgão integrante do Ministério Público do Estado do Piauí, nos termos previstos no art. 148, § 2o., da Constituição do Estado do Piauí e no art. 54 e seu parágrafo único, da Lei Complementar Estadual 12/03, de 18 de dezembro de 1993 para fins de aplicação das normas estabelecidas na Lei no. 8.078, de 11 de setembro de 1990 – Código de Defesa do Consumidor – e na legislação correlata às relações de consumo (negrito nosso).

Dentre as atribuições do PROCON/PI, que integra o Ministério Público Estadual, encontram-se, conforme art. 5º da LCE n. 36/2003: I - fiscalizar as relações de consumo, aplicando as sanções administrativas; II – funcionar, no processo administrativo, como instância de instrução e julgamento, no âmbito de sua competência, dentro das regras fixadas pela Lei nº 8.078, de 11 de setembro 1990.

Essas funções constituem típica atividade administrativa, cuja competência para exercício é dos órgãos do Poder Executivo, tais como fiscalizar as relações de consumo, aplicando sanções administrativas e funcionar, no processo administrativo, como instância de instrução e julgamento, mas o seu exercício, no Estado do Piauí, ocorre em orgão do Ministério Público Estadual.

Seguindo esse exemplo, se no Ministério Público Federal podem ser instruídos procedimentos administrativos a respeito de violações aos direitos dos cidadãos, também deveria ser possível a imposição de multa ao seu final, com ampla possibilidade de defesa e de questionamento junto ao Poder Judiciário, em relação à decisão final.

A atuação coercitiva do MP poderia ficar restrita à apreciação de casos em que não existem órgãos administrativos pertencentes ao Poder Executivo com a mesma competência, como na violação a direitos fundamentais do cidadão.


10 DA EXPRESSÃO PARQUET

A expressão francesa parquet representa a tradição do representante do Ministério Público, na França, falar aos juízes do piso mais baixo da sala de audiência. Tal designação reflete valores de uma época na qual o Ministério Público buscava ser ouvido e ascender ao mesmo status dos juízes. Sua tradução, "assoalho", ou piso baixo, nada reflete ou resume em relação às atribuições e funções atuais da instituição ministerial.

O membro do Ministério Público brasileiro tem assento à direita, e no mesmo plano, do juiz que preside a audiência, conforme disposições legais constantes da Lei Complementar n. 75/93.

Por outro lado, conforme Paes (2003), o Ministério Público francês sempre fez parte do Poder Executivo, e até hoje o faz, tendo por Chefe o Ministro da Justiça, que pode, inclusive, definir planos de atuação para os Procuradores-Gerais, que o repassarão aos demais Procuradores. Por sua vez, o Ministério Público brasileiro possui independência funcional, constitucionalmente assegurada, art. 127, § 1º, da CF/88, não sendo subordinando a qualquer autoridade, interna ou externa, no que toca à atuação funcional.

Dessa forma, o Ministério Público brasileiro mais se assemelha, em nossa opinião, ao antigo Tribunato da Plebe, e ao Tribunato proposto por Rousseau, em razão da independência e da função de órgão moderador dos poderes estatais. Melhor seria, então, que fosse designado de Tribunato, e seu membro de Tribuno, em vez de parquet.

Tribuno substituiria com vantagem a expressão parquet, na medida que reflete mais corretamente as atribuições e objetivos da instituição, principalmente no Brasil.


11 CONCLUSÃO

O Ministério Público não é, nem deve ser, apenas um órgão essencial à função jurisdicional do Estado, apenso ao poder judiciário, um simples parecerista em processos judiciais ou o tradicional autor da ação penal.

Sua função é maior. Ela consiste na defesa do regime democrático, da ordem jurídica, dos interesses difusos. Relaciona-se com a manutenção do equilíbrio entre os poderes públicos. Essa é sua vocação natural, que nenhum outro órgão possui. Não sendo parte de nenhum dos poderes, o Ministério Público pode fiscalizar a todos, de modo imparcial, sem precisar do respaldo de qualquer deles. O mandato recebido pelo membro do MP, através da lei, qualifica-o como representante do povo tanto como os parlamentares.

O Tribunato da Plebe, como boa instituição que foi, trouxe para dentro da sociedade romana a discussão sobre seus conflitos, de modo que fossem estabelecidas regras e limites para que aqueles ocorressem. Da mesma forma, um Estado Democrático de Direito precisa ter definidas suas regras e valores, com base na vontade popular, e o Ministério Público pode auxiliar o povo a resolver os conflitos sociais, participando do jogo político, sem se corromper por ele.

Ele não deve ser entendido como instituição defensora dos pobres, dando-se a esse termo o sentido de classe menos favorecida da população.

O objetivo do Ministério Público é defender a sociedade como um todo, não indivíduos ou classes sociais determinadas. Ele deve defender, quando preciso, o pobres, os ricos, os mendigos, as minorias, ou seja, qualquer um que precisar, que tiver uma injustiça contra si praticada. O fato de os pobres serem as maiores vítimas de injustiças não quer dizer que o Ministério Público não possa atuar em favor de um grupo social privilegiado, quando isso for necessário, por motivos legítimos.

O papel a ser desempenhando pelo Ministério Público é o proclamado por Rousseau em relação ao Tribunato, de mantenedor da ordem social e do equilíbrio no Estado.

Para aqueles que acreditam ser impossível as mudanças acima apregoadas, ou muito difícil sua realização, respondemos que a história ensina que os homens costumam agir de forma semelhante e cometer os mesmos erros, razão pela qual soluções encontradas no passado podem ser aproveitadas e adaptadas para o presente e são capazes de trazer bons frutos, se for captado o seu sentido e feitas as adaptações necessárias.

As mudanças deveriam ser sempre bem vindas, quando visam o bem comum. Que haja vontade política no Brasil para executá-las.


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